domingo, março 23, 2008

O MITO DO DRAGÃO ADORMECIDO
Por Martorelli Dantas

Introdução. Em nossos dias, muitos são aqueles que se levantam para falar e escrever sobre o tema da sexualidade. Creio que isso se dá basicamente por duas razões: a relevância universal da temática e um aparente retroceder no liberalismo moral da década de 70. No meio evangélico, nota-se uma delicada realidade. Há entre muitos, uma perspectiva que reflete as mesmas posições éticas e morais defendidas pela sociedade dos anos 50, o modelo de sociedade conservadora, formal e fortemente ligada à tabus e preconceitos. Será isso correto e aceitável? Há de fato, uma moralidade que possa ser denominada bíblica ou cristã? Sem dúvida o binômio ética-moralidade compõe uma das mais polêmicas áreas da vida humana. Haverá absolutos, ou cada sociedade, no seu espaço e no seu tempo, deverá compor sua própria ética moral?

No bojo deste trabalho, tentaremos discutir algumas questões, tidas como pacíficas para a comunidade evangélica brasileira, entre elas, a que mais ocupará nossas atenções, será a que versa sobre o que legitima a relação sexual entre pessoas adultas.

Muito me incomoda, ver a incoerência em que vive grande parte do evangelicalismo do nosso país. Em qualquer reunião, palestra ou seminário em que formos que trate sobre a temática do sexo, encontraremos a repetição dos mesmos padrões: os adolescentes e jovens devem resguardar-se das relações sexuais até o casamento. Todo envolvimento sexual antes do casamento ou fora dele, deve ser evitado e é pecaminoso. Por isso não faça, não pegue, não...

Finda a palestra, as despedidas, as saudações, as observações sobre quão eloqüente e firme era o pregador, os améns. E lá se vão nossos jovens para os motéis, para as praias ou outros lugares que propiciem a intimidade. Vive-se em pacífica convivência com a incoerência. Um é o discurso, outra é a prática. E isto não se dá somente entre os jovens e adolescentes. Há também da parte da liderança da igreja uma certa conivência, já que estes, não se dão ao trabalho de entrar em profundidade na discussão deste assunto, se não para passarem uma perspectiva repressora e hipócrita. Repressora, devido ao conteúdo do discurso, hipócrita, pois, freqüentemente, é gerada por uma adequação aos modelos vigentes e não de convicções pessoais refletidas e analisadas pela consciência.

Ao lado destas dificuldades já apresentadas, junta-se a questão pouco falada, da situação em que vivem os adultos solteiros, forçados a viver em abstinência sem justificativas, apenas imposições. Esquecidos, por aqueles que, comodamente protegidos pela licicitude do casamento, vivem plenamente sua sexualidade.

Algumas vezes, em minha ação pastoral, tentei conversar com minhas ovelhas sobre este tema. Lembro-me de uma ocasião em que falava a um esclarecido grupo de mulheres solteiras, e uma delas me alertou: “Pastor, é melhor deixar o dragão adormecido”. É porque não creio que a sexualidade seja um dragão, e não entendo que ela, na verdade, esteja adormecida nestas pessoas, que trago a luz estas reflexões.

Não ignoramos as dificuldades de trabalhar com temas tão polêmicos, mas cremos que há diante de nós uma gritante necessidade de que, ainda que não resolvamos estes problemas, os discutamos. Convido você, para que, com abertura, espírito crítico e compreensão, caminhemos neste labirinto de receios, tabus e carências.

I. MITOS DA SEXUALIDADE

A. O Solteiro Adolescente e Jovem

Quando pensamos em seres humanos, devemos pensar em sexualidade. Somos por natureza seres sexuados, e isto é uma grande benção. Desde os primeiros momentos de vida emitimos estímulos sexuais e os recebemos do meio exterior. Não faz muito tempo, isso não era compreendido, e parece que continua não sendo em muitos meios, notadamente, o meio evangélico. Ainda mantemos velhos conceitos, de que a sexualidade só aflora na puberdade, e que esta desaparece na terceira idade. Isso é ignorância com relação aos estudos mais recentes, e desrespeito para com as pessoas envolvidas, tanto crianças como idosas.

É muito interessante o que a comunidade evangélica, em geral, faz com os nossos moços. Dizemos a eles que o sexo é uma benção de Deus, mas que ele só deve ser plenamente desfrutado na idade adulta. Isto faz com que os impulsos sexuais nesta fase da vida tornem-se, quase, uma maldição, já que os orientamos a reprimi-los de todas as formas possíveis. Afinal, sexo é benção ou maldição para os adolescentes e jovens? Creio que o sexo é uma benção de Deus em qualquer fase da vida. E devemos aprender a lidar e desfrutar as diferentes formas de manifestação do mesmo, no desenrolar de nossas vidas.

Não quero dizer com isso, que qualquer pessoa, em qualquer idade, deve manter relações sexuais. Precisamos aprender a diferenciar relações sexuais de sexualidade. A primeira, é algo para que, só estamos preparados a partir de um momento da vida, a segunda, é algo que está em nós e, graças a Deus, continuará a estar em quanto tivermos vida, quer vivamos 50 ou 100 anos.

O que nossos moços precisam, na verdade, é serem instruídos, de forma séria e cristã, sobre como lidar com a sua sexualidade, sem lutar contra ela . Mas aprendendo a se auto conhecer, sempre, e cada vez mais profundamente. Isso haverá de ser muito útil quando ele quiser compartilhar sua sexualidade com uma outra pessoa.

Em resumo, o que temos visto, é que se tem dito aos adolescentes e jovens que aguardem até o casamento, para que dêem vazão à sua sexualidade. Em outras palavras, reprima-se até o casamento. Segure a barra!

B. O Casado

O casamento, que para muitos é um tormento e uma prisão. Do ponto de vista da legitimidade da prática de atividades sexuais, para a Comunidade Evangélica , é a Ilha de Porto Seguro. Aqueles afortunados que conseguem chegar lá, podem fazer bom uso de seus estímulos sexuais. Só que, muitos se esquecem, que para isso acontecer, ele deveria ter sido preparado na fase anterior. Não são poucos os casais e pessoas que me procuram para falar de dificuldades na área sexual, e freqüentemente, percebo que são problemas que poderiam ter sido evitados se houvesse uma melhor educação sexual anteriormente. O paraíso sonhado pode rapidamente se tornar em um inferno angustiante, por falta de preparo e de discernimento.

C. E o Adulto Solteiro?

Decidimos escrever sobre a situação de inúmeras pessoas que estão em nossas igrejas, mas que freqüentemente são esquecidas por elas. Quando não são oprimidas e mal tratadas. É a situação do homem e da mulher com mais de trinta anos, que ou não contraiu núpcias, ou por algum outro motivo vê-se descasada.

São tantos os casos, que mais cedo ou mais tarde, alguém teria que escrever sobre o assunto de modo mais específico. Não quero com isso, pleitear originalidade para o meu trabalho, entendo-o como uma contribuição para a vida de pessoas que neste contesto se enquadram e, em última análise, para a própria reflexão da Igreja.

A esses indivíduos, se tem negado toda expressão de sexualidade. Chegamos mesmo a um ponto, em que eles mesmos perderam a coragem de levantar a bandeira da discussão deste assunto. Talvez não seja correto dizer que eles perderam a coragem, já que não estamos falando aqui de um problema objetivo, mas de algo que vai sendo incutido na cabeça de nossas crianças e jovens, a medida que estes são sociabilizados pela igreja. Daí a desesperadora angústia que domina o coração, principalmente de nossas moças, quando vão se aproximando dos trinta, e passam a buscar um casamento a todo custo, para fugir da perene castração. E não raro, o fazem de forma acrítica, sem padrões ou pre-requisitos, só ânsia e desespero.


II. QUEM É O ADULTO SOLTEIRO ?

Nesta fase do trabalho, tentaremos traçar um perfil psicológico de quem é, este que é o objeto maior de nossas reflexões, o Adulto Solteiro.

Do ponto de vista da idade, convencionaremos que o adulto solteiro, é o homem ou mulher que está na faixa etária entre 30 e 60 anos. Esta é a fase da vida, comumente chamada de adulta, sendo a que segue a esta, denominada, normalmente, de terceira idade. Tenho muita dificuldade em estabelecer o teto máximo de idade que enquadrará o adulto solteiro. Isso por duas razões: Creio que fazer isso, pode ser, agir da mesma forma que a sociedade, a qual criticamos, age, castrando e preterindo o idoso. O fazemos, mais por uma necessidade didática e para configurar melhor aqueles que são nosso alvo de estudo.

Quanto ao que tange a vida sentimental ou relacional, definiremos o adulto solteiro, como uma pessoa que já passou por experiências amorosas, sendo, freqüentemente, alguém que conhece a dor da desilusão e o prazer de amar e de se dar. Não raro, é alguém que foi casado ou viveu maritalmente com alguém, e que por algum motivo alheio às suas intenções iniciais, vê-se separado. A esta altura, ele não está envolto pelas mesmas preocupações que dominaram sua mente na fase adolescente e juvenil. Assuntos como virgindade, gravidez indesejada ou temor pela reação dos pais, não mais tiram o seu sono ou perturbam o seu coração.

Ainda para efeito do nosso estudo, o adulto solteiro aqui em foco, será alguém que está formalmente ligado a uma igreja evangélica tradicional ou pentecostal clássica. Esta relação se faz necessária, já que nosso objetivo, é trabalhar não somente o adulto solteiro como um todo, mas aqueles nessa situação, que são confessionalmente evangélicos.

III. O QUE LEGITIMA A RELAÇÃO SEXUAL?

Neste capítulo tentaremos definir, o que nos parece ser a questão mais polêmica quando se discute a sexualidade de pessoas adultas.

Têm ou não, pessoas adultas o direito de exercer a sua sexualidade em todas as suas dimensões. Essa questão nos leva imediatamente a uma outra mais abrangente, o que, na verdade, legitima a relação sexual?

Tenho entendido, que são dois os fatores que tornam autentico e não pecaminoso o relacionamento sexual entre adultos solteiros: a MATURIDADE e o COMPROMISSO.

A. Maturidade

Creio que o primeiro elemento que torna legítimo o envolvimento sexual entre duas pessoas, é a maturidade das partes envolvidas. Esta maturidade esperada, em pessoas que pretendem ter envolvimentos sexuais ou que já participam deles, deve ser percebida em, pelo menos, três dimensões:

1. Biológica.

O autor de Eclesiastes, já diz que “há tempo para todo propósito debaixo do sol”. Para a prática sexual também exige-se o suficiente desenvolvimento do corpo daquele que nela pretende se envolver. Tanto homens como mulheres, passam por uma série de transformações orgânico-hormonais, até que finalmente chegam a maturidade para a prática sexual. A idade do amadurecimento orgânico varia de pessoa para pessoa, porque cada indivíduo tem o seu próprio ritmo de desenvolvimento. Mas poderíamos afirmar, com razoável tranqüilidade, que o adulto solteiro, como definido neste estudo, já encontrou tal momento.

2. Psicológica.

Se há maturidade biológica, há também a psicológica ou emocional. Chamaremos de maturidade psicológica, a fase da vida em que o indivíduo detém um conhecimento básico sobre quem é, quais os seus desejos, intenções para com a vida, e para com as sua relações interpessoais. Este é um tipo de maturidade, largamente caracterizado pelo equilíbrio emocional, que por sua vez poderia ser descrita como a capacidade de exercer controle sobre suas emoções e não permitir que estas dominem e ditem suas atitudes. Para que alguém esteja apto para um envolvimento sexual com uma outra pessoa, é indispensável que já possa discernir o que vai dentro de sua mente e do seu coração.

Não é possível dizer com que idade se atingirá esse tipo de maturidade. Há muitos que morrem de velhos e nunca a alcançam. São irresponsáveis com os seus corpos e as suas emoções. E se o são com aquilo que é propriamente seu, que dizer da forma como tratarão os corpos e as emoções alheias?

Poderíamos citar como sinais de imaturidade psicológica o egoísmo, a arrogância e a irresponsabilidade.

3. Social.

O último tipo de maturidade que gostaríamos de abordar nesta fase do trabalho é a “maturidade social”. Vamos chamar de maturidade social, a capacidade que o indivíduo tem de assumir seus atos perante a sociedade na qual está inserido. Ser ele o único responsável por tudo o que faz e diz. De certa forma, poderíamos também falar aqui de independência social, mesmo sendo este um termo ambíguo, pois nunca se é de fato independente socialmente. No máximo, se pode ser independente de um determinado grupo social ao qual se esteve preso durante muitos anos.

Os adultos solteiros, como abordados neste trabalho são em tese maduros socialmente, muito embora, saibamos que haja aqueles que mesmo depois de uma certa idade, na qual se esperaria deles a referida maturidade, não a alcançam por limitações de personalidade ou conjunturais.

Em resumo, poderíamos dizer que somente pessoas inteiramente maduras, estão aptas para entrarem em um envolvimento sexual pleno, verdadeiro e legítimo.

Quando não recomendo o relacionamento sexual entre adolescentes, não o faço com base em nenhum tabu preestabelecido que quero defender a ferro e fogo. Faço, porque creio que o desfrute prematuro do relacionamento sexual, pode trazer repercussões negativas para os próprios indivíduos envolvidos, gerando traumas e dessabores perfeitamente evitáveis se houvesse mais maturidade nas partes.

Por outro lado, é importante dizer, que a presença daquilo que chamo de maturidade integral, não é garantia de relacionamentos bem sucedidos, se afirmasse isso, a história me desmentiria rapidamente. O que afirmo, é que estes são os elementos mínimos para um relacionamento promissor. É obvio, que aqueles que estão em busca tão somente do prazer físico, não estão nem aí para se aquele relacionamento é promissor ou não. Mas isto, é outra história!

B. Compromisso.

Se por um lado, achamos que aqueles que atingiram um estágio de maturidade integral, estão aptos a se envolverem em relacionamentos sexuais plenos, por outro lado, verificamos que isso não pode ser indiscriminadamente, ou seja com qualquer pessoa que também se encontre neste nível de maturidade. Porque assim fazendo, estaríamos pregando a promiscuidade e o liberalismo relacional, o que está longe de ser o nosso caso. Por isso, neste momento do trabalho, iremos definir o segundo elemento vital para legitimar relacionamentos sexuais, o COMPROMISSO.
Somente pessoas comprometidas devem dar-se mutuamente, porque pressupõe-se nisso que estes se respeitam e se querem bem. Mas não é fácil definir o que é compromisso em nossos dias, já que pessoas que começaram a namorar ontem, já se definem como compromissadas, e muitas vezes aqueles que mantém um relacionamento de décadas, quando inquiridos sobre seus compromissos amorosos, ou os negam ou os afirmam de forma pálida e insegura.

O que poderia então, ser definido como compromisso que torna, ao lado da maturidade, legitimo o relacionamento sexual? Creio que este compromisso é algo sério e provado, vamos tentar compreender isso melhor:

1. Sério.

No passado, quando um jovem ia até a casa da moça para pedir-lhe a mão em casamento, ou tão somente autorização para namorar, uma pergunta que comumente o pai da jovem fazia era a seguinte: “Quais as suas intenções para com a minha filha?” ou simplesmente, “São sérias as suas intenções para com a minha filha?”. Esta prática completamente em desuso, encerra em si um importante conceito, o do Compromisso Sério.

O que vem a ser um compromisso sério? Naquele contexto, significava intenção de casar e constituir família, no nosso, creio que significa um relacionamento responsável, respeitoso, que leve em conta os sentimentos do outro e que é estabelecido na intenção de perdurar. É determinante para isso a forma como as pessoas se aproximam umas das outras, ou a forma como estas são atraídas para perto da outra.

Vivemos numa cultura de sedução e nos acostumamos a usar a sedução como vetor de conquista e aproximação. E seria ingênuo pensar que alguém que foi atraído pela sedução, chegue agora e não pense mais em sexo imediato. Precisamos repensar os mecanismos de atração e de interesse urgentemente, senão em bem pouco tempo seremos uma igreja tão encharcada de libidinosidade como o mundo.

2. Provado.

Todos os enamorados, amam louca e arrebatadoramente. Podem jurar que aquele relacionamento durará para sempre, ou como dizia Vinicius: “Será eterno enquanto dure”. O grande problema, é que na maioria das vezes, dura bem pouco. E como poderemos definir o que vem a ser um compromisso provado?

Nesta difícil tarefa, proporemos três princípios que podem ser úteis, ainda que não resolvam totalmente a questão. São eles: tempo, crises e respeito. Analisemos um a um:

2.1. Tempo.

Quanto tem durado um relacionamento, pode ser uma boa fonte de informações sobre a confiabilidade daquele compromisso. Ter passado pelo critério do tempo é importante, já que, pelo menos teoricamente, este permite aos parceiros se conhecerem melhor, dominarem melhor os seus próprios sentimentos em relação ao outro, assim como, conhecerem melhor aquilo que passa no coração do outro, no que diz respeito a você. Muitos são aqueles que vão argumentar dizendo: mas há tantos que se relacionaram por tanto tempo, e mesmo assim descobriram que não se conheciam. A estes eu respondo argumentando, que são muitos mais, aqueles que se entregaram sem se conhecer, e que curtiram a dor da rejeição quase que subsequente à entrega.

2.2. Crises.

Quando eu me expresso, dizendo que um relacionamento precisa ser provado, estou pensando basicamente, em um relacionamento que já passou por crises e as superou, saindo delas mais fortalecido do que entrou. A perseverança da relação, se assim me fosse permitido falar. Um relacionamento por mais longo que seja, sem que tenha passado pelas crises da convivência a dois, pode ser extenso mais não foi intenso, pode ter sido longo, mas, provavelmente, não foi profundo.

Mas é preciso que eu alerte aos leitores mais desavisados, que não estou falando de instabilidade. A crise nossa de toda semana. Não considero um compromisso provado, aqueles que vivem de tropeços a cada metro do caminho, de desavenças. de incompatibilidades e intrigas. As crises não são meros desentendimentos. São provas da firmeza e seriedade do compromisso.

2.3. Respeito. Em último lugar, vamos nos referir ao respeito, como critério para determinar se um relacionamento pode ser considerado provado. Tudo em um envolvimento amoroso deve ocorrer sob a égide do respeito mútuo. No amor, toda a agressividade será castigada. É indispensável que cada um saiba respeitar o corpo do outro, os limites do outro, os sentimentos do outro etc. Sem respeito, a convivência é infernal ou humilhante, e inexiste a segurança.

CONCLUSÃO. Sei que muitos são aqueles, que ao lerem essas páginas vão dizer: “Liberou Geral?” A minha resposta para esta pergunta/afirmação é um categórico NÃO! Entendo, que quando estabelecemos critérios sérios e éticos para os nossos comportamentos, sem deixa-los às escuras por medo de discuti-los, estamos, em última análise, colaborando para a sanidade espiritual e psíquica de nossas comunidades.

Meu sonho, é ver no futuro uma igreja evangélica menos oprimida e opressora, e mais livre e curativa. Onde o bálsamo da tolerância e da compreensão seja ministrado ricamente ao mundo pelas mãos de Cristo, que é a Igreja.

Não é só liberdade com responsabilidade, é liberdade para quem tem responsabilidade.
Páscoa: Memórias da Escravidão e o Preço da Liberdade

Esta é sem dúvida a festa cristã mais importante do calendário litúrgico, mas poucos dão a ela a relevância que a mesma reclama. No Brasil, particularmente no Nordeste, dois elementos se tornaram dominantes na tarefa de simbolizar a Páscoa: o chocolate e os espetáculos. Eu não quero diminuir o valor e a importância de nenhum dos dois, principalmente do primeiro, mas obviamente que ambos são periféricos e nem sequer tangenciam os grandes desafios que esta época do ano evoca.
O chocolate não o faz, porque é uma tradição importada da Europa, que remonta ao hábito nórdico de dar ovos decorados aos amigos neste período do ano, e acaba falando mais ao estômago que à alma. Já os espetáculos não o fazem, porque impressionam mais pela performance dos atores que naquele momento encenam um drama, que poderia ser de Shaquespeare ou de um outro grande escritor, do que pelo conteúdo das falas e vidas envolvidas.
Para compreender o sentido da Páscoa, precisamos nos reportar ao livro de Êxodo, ao instante mesmo em que ela foi instituída por Deus, através de Moisés (cap. 12). Primeiramente, a Páscoa é uma ceia, algo que não se deve fazer sozinho, é um ato da coletividade, sobretudo da família (é uma festa para ser celebrada entre os seus). Em segundo lugar, ela é um marco entre o estado de escravidão e a liberdade que se anuncia próxima. Através dela nos recordamos do amargor dos dias que passamos sob os rigores da exploração, dos dissabores de uma vida sem sentido, a serviço dos interesses alheios, onde éramos vistos como máquina, números, contingente de manobra, de quando fomos feitos coisa (res). E em terceiro, lugar é preciso comer de pé e vestidos para partir, como se dizendo que somos seres "de partida". Se há um signo supremo sobre o povo de Deus é este, eles estão "de partida".
Mas o mais importante símbolo da Páscoa é o "sangue do cordeiro" que foi aspergido sobre os umbrais das portas das casas para que o anjo da morte não toque as famílias nelas abrigadas. A morte do cordeiro nos livra da morte dos nossos filhos. Seu sangue em nossas portas nos protege da visita da desgraça e da calamidade. O dia em que os cordeiros foram mortos no Egito foi o mesmo em que morreram muitos primogênitos. Filhos queridos, sacrificados para que um povo fosse libertado, para que um coração fosse quebrantado, para que uma profecia fosse cumprida. É um preço caro demais. Fosse eu juiz de tudo, inclusive da história, e me perguntassem se gostaria que a liberdade do povo de Israel se construísse deste modo, diria que não. Preferiria que continuássemos buscando soluções menos gravosas, esgotássemos a diplomacia... quem sabe mais piolhos?
O fato é que não importa o que eu penso. A liberdade tem um preço, e é caro. Imagine você em um restaurante de frutos de mar (eu amo frutos do mar). Mas este é um restaurante especial. Nele você não precisa fazer pedidos, os garçons trazem pratos prontos e lhe oferecem. São patolas de caranguejo à milanesa, aratu, camarões de todos os tipos. E você vai pedindo o que sentir vontade e na quantidade que lhe convier. Só é preciso não esquecer de uma coisa, antes de sair você precisará pagar a conta. Este é um princípio universal de nossas vidas. Nós fazemos as escolhas, ma sempre pagamos o preço das decisões que tomamos. É justo que seja assim.

Esperamos que nesta Páscoa nós tenhamos tempo para lembrar da época em que éramos escravos e vivíamos perdidos, alheios à vida da Graça em Cristo Jesus e nos recordemos que para que pudéssemos ter a paz com Deus que agora temos foi preciso que o Filho Amado do Pai se entregasse em nosso lugar.
Feliz Páscoa!
Com carinho,
Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org

quarta-feira, março 12, 2008

Ramos Secos

Hoje é Domingo de Ramos. Recordamos-nos da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Este acontecimento daria início à sua paixão, seu sofrimento final, que nos conduziu à salvação e à comunhão absoluta com o Pai. O dia de hoje é bastante eloqüente por pelo menos três motivos: lembra-nos que os homens souberam ver em Jesus sua realeza e majestade; que com alegria o Senhor acolheu os gritos de louvor e os gestos de celebração de seu reinado e que tão depressa o povo pode esquecer dos “hosanas” que cantaram e foram capazes, as mesmas bocas, de se encherem de um “crucifica-o! crucifica-o!”. Os ramos logo secaram! Sempre secam com rapidez porque para que possam ser usados para os acenos precisam ser desarraigados do tronco e das raízes. Ramos ao ar é certeza de breve desvanecimento.

Esta pode ser uma lição triste, mas não sem valor. Em momento nenhum Jesus depositou confiança nas palavras dos homens. Não o vemos nem decepcionado nem frustrado com a mudança tão brusca e radical que se verificou em menos de uma semana. Ele conhecia a natureza dos homens. Sabia da volubilidade das pessoas e que confiar em seus aplausos ou temer suas vaias é comportamento de quem não sabe a razão pela qual vive e exerce seu papel neste mundo. O grande desafio da sabedoria e da humildade que buscamos é ter uma vida guiada por valores e não pela contínua busca de aprovação popular. Foi Nietzsche quem disse que “vale a pena trocar o que não se pode reter por aquilo que não se pode perder”. Querendo com isso ensinar que a nossa identidade é algo que não podemos negociar e a aprovação popular é algo que não podemos manter indeterminadamente em nosso favor.

Contudo, não são poucas as pessoas que encontro em minha caminhada cujas vidas se pautam pela expectativa de faustos e festividades em sua honra. Não estou dizendo que ser celebrado e festejado não seja bom. É! O que estou afirmando é que tais acontecimentos não podem dirigir os nossos passos. O Mestre estava indo para Jerusalém para ser crucificado e morto em nosso favor. Em suma, buscava realizar a vontade do Pai. No meio desse caminho ele foi assaltado pelos gritos de louvor e de exaltação do povo, o que alegremente acolheu, mas não foi por este motivo ou à procura disso que encaminhou seus passos para a “cidade santa”.

Não há um único geste em Jesus que seja feito à procura de prestígio ou fama. Estes vieram a despeito de todo seu esforço para manter-se oculto, no anonimato. Muitas vezes o vemos realizando milagres e pedindo às pessoas que eram agraciadas para que nada dissessem a ninguém (bem diferente do que vemos hoje acontecendo tanto na televisão como nos templos cristãos). Ele sabia que muita exibição na “mídia” só lhe traria invejas e perseguições. As pessoas que precisavam dele, estas ele as encontraria no caminho, não em grandes encontros laudatórios.
Eu ainda estou aprendendo a não me preocupar com a opinião pública. Recordo-me de um tempo em que servi a ela, como se serve a um deus. Fiz suas vontades e desejei que estivesse sempre do meu lado. Hoje eu compreendo que não deve ser esta a nossa direção. Fazer a vontade de Deus deve ser nosso Norte. Fazendo-a, diz-nos Jesus, todas as outras coisas nos serão acrescentadas. E tem sido assim em minha vida. Se as pessoas me parabenizam por esta ou aquela conquista, por este ou aquele ato, alegro-me e recebo de bom grado as congratulações, mas nenhum deles imagina que por eles ou para eles fiz o que fiz. Fui movido sempre por um senso de vocação. Se ouço críticas e reclamações a respeito desta ou daquela atitude que tomei, considero as razões apresentadas, questiono se não fui tolo ou imprudente em agir como agi. Se nada me acusa a consciência, simplesmente sigo o meu caminho, sem qualquer peso em minha alma. Nunca me esqueço que ramos secam muito rapidamente.

Mas hoje é Domingo de Ramos! Levantemos nós também os nossos ramos e saudemos a Jesus que vem para nos libertar e salvar. Ele é a nossa alegria e glória. Fonte única de certeza e de segurança. Graças a Deus, ele continua aceitando nossos cânticos e hosanas. Não se importa por sermos tão volúveis e mutáveis. Não podemos oferecer-lhe mais nada além de nossos sinceros sentimentos neste exato momento e pedir que ele nos mantenha fiéis, posto que esta não é uma qualidade dos homens. Paz e Bem!

Com contentamento e alegria,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org

quarta-feira, março 05, 2008

Um coração de mulher

Ontem celebramos o Dia Internacional da Mulher, a própria existência de uma comemoração assim já nos revela o fato de que ainda há muita discriminação em nosso meio. Não fosse isso verdade seria desnecessária tal festividade. Quem já ouviu falar do Dia Internacional do Homem? Homens e mulheres são realmente muito diferentes. Não apenas física e emocionalmente, mas também no que diz respeito às práticas espirituais. Desde que comecei o meu ministério pastoral, há vinte anos, foram sempre as mulheres que vi sustentando as igrejas, através de seu trabalho, dedicação, compreensão e amor. Nos cultos de oração das mais humildes congregações, lá estão elas aos pés do Senhor, clamando por seus esposos, por seus filhos... por seus líderes. As mulheres são o esteio da igreja.
Na Bíblia esta realidade também se revela. São inúmeras as mulheres em ambos os Testamentos que enaltecem o gênero pelo seu modo digno de viver e de agir. Mais que submissas, elas são verdadeiras auxiliadoras de seus maridos, quando não seu arrimo e consolação. Mulheres santas como Sara, esposa de Abraão; Ana, mãe de Samuel; Rute, companheira de Boaz. Marcadas pela profunda confiança em Deus e por uma completa devoção às suas famílias. Quando pensamos nos grandes personagens masculinos da Antiga Aliança, somos capazes de imaginá-los em guerras e conclaves, mas cada mulher nos aparece relacionada diretamente aos de sua casa. Ainda vai levar muito tempo para que os homens aprendam que as lutas que realmente importam são aquelas que precisamos vencer no seio de nosso lar.

O Novo Testamento não nos deixa sem nossas musas. Ele nos apresenta Isabel, mãe se João Batista; Priscila, esposa de Áquila e Lóide, avó de Timóteo. Mas entre todas as mulheres encontradas nas Sagradas Escrituras, nenhuma resplandece como a Virgem Maria. Gosto de pensar que Deus, na eternidade, ao planejar redimir o mundo de seu estado de perdição e de pecado, decidiu que o seu Filho não teria só dissabores nesta terra, não viveria só de ingratidão e de humilhação. Quis que ele conhecesse o bem mais sublime que em toda criação é possível vislumbrar: o colo de uma mulher: mundo de aconchego e de paz, fonte de segurança e conforto, recanto de amor e de alegria. Nada se compara a um colo de mulher.

Quando penso na rudeza e pobreza do presépio, creio que os nossos olhos se enganam. Não fora o Pai tão cheio de desconsideração para com seu Unigênito, que o enviou para nascer numa estrebaria e repousar numa manjedoura. Todos estes elementos, presentes na natividade, foram eclipsados pelo colo de Maria. Foi nele que Jesus foi recolhido ao nascer, seu primeiro berço foram os braços de sua mãe. Neste sentido, nem mais pobre nem mais rico que qualquer um de nós. Pois a fortuna com que abençoou o Redentor, Deus nos aquinhoou também. Sou grato pelo colo que me recebeu e me recebe, nunca indisponível a mim.

As mulheres, passados tantos milênios, realizadas tantas conquistas e avanços políticos, econômicos e sociais, continuam seres frágeis e doces. Quem dera permanecessem sempre assim. Sinto-me feliz por ver que já não resistem em nossos dias aquelas figuras estranhas que militavam no feminismo das décadas de 70 e 80, caricaturas de homens, copiavam nossos piores defeitos enquanto maquiavam, desnecessariamente, suas maiores virtudes. A feminista de hoje é feminina também. E há muito pelo que lutar e pelo que chorar. Lamentar pelos homens que continuam falando a linguagem bestial da violência, na ignorância de que proteger a mulher é cuidar do útero da existência, do olho d’água da vida humana.

Sei que um dia partirei desta estrada tão acidentada e desértica. Irei, conduzido por anjos, ao encontro dos santos do passado. Serei recebido no habitat celestial, todo adornado de ricas pedras e imarcescíveis flores. Ao chegar na morada dos espíritos, onde as antigas canções são entoadas por perfeitas vozes, farei, então, a mais surpreendente de todas as descobertas, sempre silenciosamente suspeitada, mas nunca, nem agora, confessada. Dar-me-ei conta, ao lado de meus irmãos, que há mais de mulher em Deus do que tiveram coragem de conjeturar os teólogos e proclamar os profetas. Posto que sei que serei abraçado e um melódico som de muitas águas pronunciará meu nome e me contará da saudade que sentia e o desejo ardente que premia de se encontrar comigo. Estará descoberto, então, que o céu, o verdadeiro céu, nem é um palácio nem um casarão, não é feito de nuvens nem de algodão, é só um coração... um coração de mulher.

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org