sábado, maio 31, 2008

Entre Nietzsche e Hodge

Quando me sentei para escrever este artigo, minha mente logo se reportou às palavras introdutórias de Nietzsche em A Gaia Ciência. Ele havia se recuperado de uma grave enfermidade e estava com o espírito em festa por poder volta ao labor da escrita. Disse que quando se vive este estado de “beirar a morte” e se tem a oportunidade de regressar às dinâmicas da existência, volta-se como quem “ama uma mulher em quem não se confia”. A mulher é a vida, amá-la é urgente, mas se faz isto sem que a entrega seja total, meio que com um pé atrás. Sabe-se que não se pode confiar no tênue fio que prende os mortais a este mundo. Durante os últimos quinze dias eu estive seriamente doente, como nunca antes tinha estado em minha vida. Já tive hepatite, cálculo na vesícula e viroses sem fim, mas nunca me senti tão debilitado, nem tão angustiado ante as demandas que continuamente assolavam minha alma, para as quais não podia dar resposta.

Nietzsche é a mente filosófica mais próxima a minha. Ele é muito mal-falado (nisto também nos identificamos), contudo, a grande maioria de seus críticos arremessam contra ele suas setas sem que o tenham lido ou se esforçado para compreendê-lo. O ponto de partida para isso é lembrar que estamos diante de um filho e neto de pastor. Poucos sabem o impacto que crescer dentro de um ambiente densamente religioso pode causar numa alma. Meus avós, tanto maternos quanto paternos, eram religiosos, presbiterianos e congregacionais, respectivamente. De ambos os lados estava eu decisivamente influenciado pela teologia calvinista, vinda especialmente da matriz norte-americana, nas levas de missionários chegados ao Brasil em meados do século XIX, sob influência direta de Charles Hodge, o grande doutor de Seminário de Princeton.

Hodge era um pensador sistemático, como de resto o são os protestantes. Seu pensamento é esquemático, seu Deus é esquartejável, cabe em compartimentos, em tomos teológicos analisáveis pela lógica cartesiana. Fui durante mais de 15 anos professor de teologia sistemática e de hermenêutica bíblica. Trabalhei nos grandes seminários do Recife. Parece que fui um bom discípulo daqueles que são capazes de reduzir a vontade, a mente e as ações divinas em coordenadas e abscissas. Sabia fazer as interpretações que tomam os textos bíblicos como instrumentos de “prova” das antigas verdades (qualquer coisa de 400 anos é antiga para quem tem 40, contudo conheço heresias mais velhas). O dogma da harmonia das Escrituras era o martelo e o formão para deixar plano o sinuoso e a lamparina para clarear o obscuro. Mas fiquei velho para tais contorcionismos, quero ver o que se pode e aprender a andar na penumbra onde a natureza não lançou luz.

Nietzsche muito me ajudou nisso tudo. Aproximei-me dele através das frases bombásticas, como a maioria das pessoas. Afirmações como a de que Deus morreu me impressionaram, queria saber do que ele estava falando, queria ler o autor de contundentes assertivas, forjadas em um coração tumultuado, crescido num lar luterano. Entendi o que ele queria dizer. O deus que morreu é aquele que já não cabe em uma alma livre. Liberta pela revelação de que o verdadeiro Deus é Pai presente e amoroso, de que não é alguém a quem temer, mas para se confiar e contar. O filósofo alemão nos chama para viver o aqui e agora, mas acima dos tabus e preconceitos nascidos das taras moralistas da hipocrisia reinante. O deus que morreu é o de Hodge.

Faz alguns dias que eu estava com Karina, lendo, em minha convalescência, Crime e Castigo de Dostoievski. Ela, que cuidava de mim em uma daquelas intermináveis noites, me perguntou sobre o que queria Nietzsche dizer com a doutrina do “eterno retorno”. Expliquei-lhe que ele construiu um critério para validar as escolhas que fazemos em nosso dia-a-dia. Imagine que a vida é uma constante repetição, que as decisões que tomamos agora retornarão infinitamente. Ou seja, esta nossa conversa neste quarto voltará sempre a acontecer, tendo isto em mente se pergunte: é isso mesmo que eu quero fazer? Olhei em seus olhos e disse que seria para mim um imenso prazer viver para sempre o vivido ali. “Oh! Minha amada que olhos os teus!”.

Hoje, presente supremo de Deus que me fez voltar à vida, quero apenas caminhar e sorrir com meus companheiros. Buscar a alegria e fugir da dor, ajudando a quem puder a fazer o mesmo movimento existencial. Sofrer é inevitável, mas aprendamos com ele. E em tudo nos esforcemos para não fazer sofrer.

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org