segunda-feira, agosto 23, 2010

O Verdadeiro Senhor dos Anéis


Por Martorelli Dantas


Começo o meu artigo desta semana com certo tom de constrangimento... confesso, eu não gostei da trilogia O Senhor dos Anéis. Digo “constrangimento”, porque a maioria das pessoas interessantes que eu conheço gostou. Um querido colega de seminário e depois meu professor no mestrado em Teologia, Dr. Ricardo Quadros Gouvêa, é um cultor do trabalho de Tolkien, desde antes de surgirem os filmes e as traduções de sua obra no Brasil. Mas por que será que eu não gostei? Talvez porque eu tenha me identificado com os vilões e não com os heróis. É horrível quando uma coisa assim acontece. Os vilões sempre levam a pior.


Durante vários dias ficou em minha cabeça a figura de Gollum (ou Sméagol), aquele ser asqueroso e pequeno que vivia uma relação de obsessão com o anel, cultuando-o, ao mesmo tempo em que, temendo-o, é seduzido pelo seu poder. Li em um artigo da Wikipédia esta interessante descrição do fascínio que o anel exercia: “O poder quase absoluto do anel corrompe o carácter e deforma a personalidade daquele que se atreve a empunhá-lo, ainda que movido por boas intenções”. Para mim está mais do que claro que o anel, da saga Frodo Bolseiro, é uma coisificação (talvez prefiram “reificação”) de todos os objetos de consumo, é uma jóia que sintetiza o poder de toda forma de tesouro que há na Terra.


Jesus disse que “onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração” (Mat. 6:21). Não é por acaso que Gollum repete sempre a expressão “meu precioso, meu precioso...”, enquanto beira o orgasmo, envolto na relação tóxica que mantém com o anel. Relações tóxicas são aquelas nas quais somos continuamente destruídos, mas, mesmo assim, não consiguimos nos desvensilhar delas. Estas relações nascem entre pessoas e substâncias, pessoas e bens e pessoas e pessoas. Nem as pessoas, nem as substâncias ou os bens são ruins em si mesmos, a relação é que é o problema. Quando a nossa mente se torna cativa desta relação, seu objeto é entronizado à condição sem a qual não (conditio sine qua non) há vida. Converte-se no epicentro de nossas existências e domina todo processo de pensamento.


Isto é diferente de amor, e até mesmo de paixão. Quando estamos apaixonados somos invadidos pelo desejo, por uma fome imensa de ter o outro perto de nós (ou dentro de nós), mas o outro mantém a sua identidade e nós a nossa. Na relação tóxica já não consiguimos pensar no prazer de estar com o outro, o que nos aflige é a possibilidade de perdê-lo, de, no momento seguinte, não tê-lo mais, por isso queremos possuí-lo, como se fôssemos espíritos malígnos que entram no outro e assumem o controle de sua vontade e caminho. Só assim nos sentiríamos seguros. Como isso não é possível, posto que nossa fisicalidade nos impede de fazê-lo, nos contentamos em “cheirar a coisa” o tempo todo, num esforço tanto inútil quanto angustiante de fazer com que ela seja parte de nós, que ela encarne em nós.


Ainda mais longe do amor está a relação tóxica. No amor a experiência de auteridade é absoluta. O que nos encanta é existência do outro fora de nós, o que possibilita a parceria e a cumplicidade. Nosso desejo não é anular a sua personalidade, para que tenhamos absoluto controle sobre ele, mas que ele, sendo ele, esteja perto de nós, como o som de uma bela música, que enternece e eleva a nossa alma simplesmente por existir. No amor andamos de mãos dadas, na paixão somos interpenetrados, mas na relação tóxica o que buscamos é o impossível, o irealizável, por isso nunca há descanso, nem banco de praça, nem sono post amore, só o desejo de sentir o desejo que nos aprisiona.


É por isso que afirmo que o Diabo é o Senhor dos Anéis. Pode ser que você nem creia na existência de um ser que seja a encorporação do mal, isso não importa, o que interessa aqui é que você perceba que a única realidade diabólica (do grego dia + baleo, aquilo que nos joga de modo atravessado, que nos rouba de nós mesmos e nos deixa caídos) é a toxicalidade das relações que estabelecemos. A missão de Jesus não foi morrer na cruz, mas nos mostrar que é possível viver neste mundo, fazendo do amor o nosso único tesouro. Quem fez esta alquimia, converteu as coisas tidas como insignificantes, como lírios e pardáis, em objetos de doçura; se capacitou a olhar para o Gollums desta vida com compreensão e vontade de libertação, já não perde nada na morte, nem teme a dor, pois sabe que a única realidade que lhe espera no instante seguinte da existência é uma nova forma de amar, uma nova e diferente manifestação da caridade Paterna.


Com carinho,


Martorelli Dantas, um cara que deseja, só desejar o amor.

quinta-feira, julho 22, 2010

Ecumenismo, uma utopia (sem lugar) à procura de um topos (lugar)

Por Martorelli Dantas*

O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa define o verbete "ecumenismo" como sendo (1) movimento universal de união das Igrejas Evangélicas (protestantes). (2) O mesmo movimento estendido a todas as igrejas cristãs, abrangendo o protestantismo, catolicismo e os diversos ritos orientais (vem do grego oikoumenismós).

A palavra é composta de duas expressões gregas hoikós = casa / koumene = comum. Assim, ecumenismo nasce da utopia de que todos os seres humanos possam "habitar uma casa comum", ou seja, compartilhar a mesma fé e esperança espirituais. De fato, tal ideal jamais poderia ser vivenciado, quer seja porque há uma gama muito grande de diferenças entre as culturas, e a espiritualidade é expressão dos contornos culturais de um povo; quer seja porque há uma natureza fragmentária nos movimentos concretos de espiritualidade. Ao invés de caminharmos na direção da unidade, o que se verifica na experiência religiosa é que por menor que seja um grupo, ele tende a se dividir. São os irrefreáveis efeitos da vaidade e do orgulho, do narcisismo que só nos permite ver como convenientes e adequadas as manifestações intelectuais e confessionais que se assemelham às desposadas por nós e por nosso gueto. Como disse Caetano "narciso acha feio tudo que não é espelho".

O máximo que temos identificado é o que Francis Schaeffer chamou nos anos 70 de “cobeligerância”, a capacidade de pessoas que crêem em realidades diferentes se juntarem, momentaneamente, para lutarem contra um inimigo comum, como a legalização do aborto ou a proibição de cultos em espaços públicos. Este tipo de experiência não fala de identidade interna entre os grupos, mas de uma luta (beligere) feita em parceria (co). Para isso nem precisam ser grupos religiosos, visto que um sindicato de metalúrgicos e uma igreja batista podem, simultaneamente, combater a presença de traficantes em uma escola pública local. Ecumenismo é muito mais do que cobeligerância, mas inclui este conceito.

A pergunta que se mantém no ar é a seguinte: seria o ecumenismo uma proposta de fato conveniente para aqueles que professam fé em Jesus de Nazaré? Como ponto de partida, convém lembrar que o desejo de unidade entre seus discípulos é parte essencial da oração sacerdotal de Jesus, registrada no capítulo 17 do Evangelho de João. Vejamos a expressão literal dele no versículo 21, na qual diz que ora "para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste." Sim, Jesus desejava que a unidade de seus discípulos fosse um sinal visível de sua ligação com ele e com o Pai. Logo, há no Mestre o desejo de que aqueles que crêem nele andem juntos, sirvam uns aos outros, encarnem neste mundo caído e tenebroso “seu corpo e seu sangue”.

Penso que todos os que seguem a Jesus têm esta comissão, a de andarem juntos. Contudo, nossas diferenças doutrinárias falam mais alto que a oração de Cristo. Uns são pela predestinação, outros pelo livre-arbítrio; uns são sabatistas, outros guardam o domingo; uns são imersionistas, outros aspersionistas; uns acreditam no batismo com o Espírito Santo como uma segunda benção, outras acham que ele se dá na hora da conversão... as diferenças são tantas que cansaríamos de enumerá-las, mas será que alguma destas coisas é mais importante do que o desejo do Rabino da Galiléia de que andássemos juntos? Será que até questões mais sérias, do ponto de vista teológico, tais como crer na Doutrina da Trindade ou na suficiência da graça, seriam motivos para não andarmos lado-a-lado na proclamação das Boas-Novas?

A minha impressão é que o fracasso do ecumenismo está diretamente ligado ao egocentrismo e individualismo que grassam em nosso tempo. Mesmo quando eu olho para as religiões consideradas pagãs, vejo que há na abordagem cristã em relação às mesmas, uma impiedade muito maior do que a que foi ensinada no Novo Testamento. Por exemplo, Paulo quando foi evangelizar em Atenas, tomou como ponto de partida de sua pregação um elemento do panteão grego, “o altar ao deus desconhecido”. E diz que é justamente este que ele vinha anunciar. Claro que “o deus desconhecido” não era Jesus, era uma figura que se inserira na tradição ritual e litúrgica grega em uma conjuntura histórica local, mas Paulo achou que este elemento pagão poderia ser um link interessante para a proclamação que tinha para fazer. Quantos de nós teríamos o mesmo tino e coragem missiológica hoje?

Mas o zelo pela verdade do Evangelho não deve ser negligenciado. Não é possível que admitamos que “todo caminho dá na venda”, que toda forma de espiritualidade leva a Deus. A verdade é que muitas formas de espiritualidade nos afastam do Deus vivo e verdadeiro, revelado por Cristo Jesus e trazido até nós, por obra do Espírito Santo, através dos relatos canônicos. Algumas das mais perigosas destas espiritualidades desviantes estão justamente entre as comunidades protestantes, cito como exemplo a Teologia da Prosperidade e o Fundamentalismo Presbiteriano, ambas filhas do materialismo e da arrogância da cultura norte-americana.

Creio que devemos nos limitar, de modo radical, ao que foi ensinado pelo próprio Jesus, e isto feito de modo simples e claro. Aquilo que não foi anunciado por Jesus não é essencial. Aquilo que ele deixou de afirmar como caminho de salvação é, por isso mesmo, periférico. Tudo quanto eu elenquei acima, como pontos de bifurcação da fé cristã não aparecem no ensino direto do Salvador nos quatro evangelhos, e podem ser desposados por este ou por aquele grupo cristão, sem qualquer prejuízo para a unidade maior peticionada pelo Encarnado.

O que seria, então, essencial e inegociável? Sugiro sete verdades: fé na eficiência do sacrifício expiatório de Cristo, realizado de uma vez por todas na cruz do Calvário; consciência do amor e cuidado do Pai por todas as criaturas (por exemplo: pelos lírios do campo, pelos passarinhos e por todos os homens); decorrente desta consciência, a libertação de toda forma de medo ou de ansiedade, que escravizam e retiram a capacidade de vivermos confiantes e agradecidos no presente; ciência de nossa incapacidade de exercer qualquer tipo de julgamento sobre os nossos irmãos, uma vez que somos seres “travados” (com uma trave nos olhos); exigência do perdão às ofensas de nossos irmãos contra nós, como conditio sene qua nom para que fruamos o perdão do Pai em nosso favor; renúncia a toda forma de espiritualidade “para inglês ver”, de vida espiritual performática, mas um retorno à alcova da intimidade com Deus, exclusivamente sob seus olhos; disposição radical de nos desapegarmos de tudo que sirva de empecilho para que sejamos porta-vozes da “reconciliação realizada”, essência suprema da Boa-Nova cristã.

Todo ser humano que seja capaz de afirmar estas sete verdades será por mim chamado de “Meu Irmão!”. Todo aquele que, por uma questão de consciência ou de fé, não for capaz de subscrevê-las é “pródigo”, que sendo filho não se deixa amar como tal, mas que nem por isso deixa de sê-lo. A ele eu quero procurar e buscar, para dizer-lhe que o Pai não está com raiva dele, que, em verdade ele o ama e perdoa, que o quer em sua companhia. E quando, segundo a operação do Consolador, alguém crer no amor e se voltar para Ele, eu quero dançar no eterno baile dos arrependidos, para o qual eu sou continuamente convidado.

Alguém lendo esse modesto rol de verdades da fé poderá dizer: assim é fácil demais! Ao que eu responderia: É não! O problema nunca foi saber o que Jesus ensinou, mas o que nós temos a dizer sobre o que Jesus ensinou. São nossas interpretações autojustificativas que nos separam. É a água que pomos no vinho para que se torne mais palatável, que faz do Evangelho uma sangria, que nem é boa como o vinho, nem refrescante como a água. E assim caminha a humanidade... explicando para complicar, expondo para encobrir e anunciando para que ninguém conheça.

Devo confessar que não sou tão ecumênico como gostaria de ser. Parece-me que o ecumenismo radical exige um alto grau de indiferença em relação àquilo que crê e professa o outro. Eu não sou assim. Tenho em mim, ainda, uma fagulha apologética que me faz indignar, não contra budistas, islâmicos e hindus, mas contra aqueles que usando o nome de Jesus, fazem dele um déspota ou uma marketeiro de bens de consumo; um irmão-mais-velho que se queda indiferente, e até mesmo contente, pelo fato de ser agora o único a gozar (sem gozar) da comunhão com o Pai.

Foi ele quem nos chamou de volta à casa do Pai, nossa casa comum; que nos foi preparar lugar; que com um azorrague depôs do trono o usurpador legalista e perpetuamente irado que os fariseus haviam entronizado como Deus e fez no lugar-santo se assentar o “Pai Nosso que está nos céus”.


* Bacharel e mestre em Teologia e Direito. Doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Introdução ao Estudo do Direito e de Direito Constitucional na Universo (Recife) e na Faculdade Metropolitana (Jaboatão dos Guararapes – PE). Mentor da Estação da Zona Sul do Recife do Caminho da Graça.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010


Filosofia do Amor

Houve um tempo em que todas as ciências eram meros ramos da filosofia. Foi com o advento da mentalidade moderna, excessivamente analítica e carregada da pretensão de alcançar a verdade em ralação a todos os objetos, que, a partir do séc. XVIII (e principalmente no séc. XIX), se fez o desenlace de saberes como a sociologia, a psicologia, a antropologia e a economia da mater scientia.

Não obstante, há algo que nunca foi ciência, que os homens cultos e civilizados dos nossos dias ignoram tanto quanto desconhecem a si mesmos e às razões mais profundas pra viver e se dar. Refiro-me à filosofia do amor. Estou convencido que quanto mais nos desenvolvemos tecnologicamente, nos habilitamos a conhecer os fatos que se dão do outro lado do mundo em tempo-real e nos informamos sobre a opinião, virtudes e tragédias das celebridades, estamos nos tornando cegos e surdos em relação aos nossos sentimentos e os das pessoas que vivem ao nosso lado. É como se nos estivéssemos conectados com o “fora e longe” e, para isso, nos desligamos do “dentro e perto”. Já disseram que internet é uma ferramenta que aproxima os distantes e afasta os próximos. Este texto pretende apenas lançar as bases daquilo que chamo de “amizade com o saber amar” (filosofia do amor).

Em primeiro lugar, é preciso evocar a consciência de que nós não existimos pra trabalhar, para procriar, para conquistar terras e riquezas. A única razão para que eu e vocês estejamos aqui e agora, compondo a história da raça humana sobre a Terra, é que este mundo precisa muito de amor e Deus achou que nós poderíamos ajudar nisso. Não é por menos que vida sem amor não é vida e que só o amor tem o condão de transformar um ser humano de dentro pra fora. Foi o apóstolo Paulo quem disse que “o amor tudo suporta”. Não no sentido de que quem ama aguenta todas as coisas, mas que é o amor que a tudo sustenta e quem não tem amor está no vazio, precipita-se no abismo.

Em segundo lugar, importa que saibamos que amar não é uma garantia de que não vamos sofrer ou fazer sofrer. Pelo contrário, a palavra “paixão” tanto significa desejo quanto dor, é que também no que diz respeito às emoções, entre o “bem e o mal Deus criou um laço forte, um nó, e quem viverá um lado só?”. A filosofia do amor nos ensina a arte do perdão, ter olhos pra enxergar que o presente é mais importante e maior que o passado. Se quisermos viver das amargas lembranças do ontem, desligaremos a graça do hoje e inviabilizaremos as doçuras possíveis do amanhã. São escolhas a fazer, decisões a tomar. Perdoar não é esquecer, é abrir mão do direito de cobrar.

Presbiterianamente, em último lugar, mas não com a ilusão de esgotar a filosofia do amor, posto que este é um saber sempre em construção, quero lhes propor que importa que nos entreguemos inteiramente ao mar do amor, sem barcos nos portos a esperar, sem rotas de fuga, sem um “se não der certo...”. Quando nos damos em parte não podemos esperar viver plenamente satisfeitos. O amor não se pode aprender sem a radicalidade dos revolucionários. Foi Caymmi que lançou para o infinito a vexata quaestio: “por que de amor para entender é preciso amar, por que?”. Nas palavras de Fernando Sabino, no final vai dar certo, se não deu ainda, é porque não chegou ao final. Filosofia do amor a arte da contínua superação.

Com carinho,

Martorelli Dantas

Saudades de quem não partiu

Ontem encontrei com um doce amigo, Túlio Vinícius. Encontrei-o, mas ele estava ausente. Nem sempre estamos presentes onde presentes estamos. Presença é mais que consciência, é vontade de brincar, de sorrir, de dançar. Isto fizemos muitas vezes juntos. Senti saudade de nossas longas conversas sobre a fé e a graça, de suas risadas simples e de sua imensa fidelidade à minha sempre constante debilidade. Túlio é um desses homens raros, que não pode trair-se a si mesmo, que teima em ser escancaradamente ele mesmo, ainda que debaixo de pesados disfarces.

Quando orei por ele tive que me corrigir várias vezes em minhas palavras. A mente teimava em conjugar equivocadamente o verbo, como se falasse de alguém que foi, enquanto ele ainda estava ali. Será que estava? Nietzsche disse que não poderia crer num Deus que não soubesse dançar. Nem eu. Vejo em tudo o que olho os passos leves e precisos do bailar divino. Foi por isso que meu amigo atendeu pálido à minha saudação, diferentemente de tantas outras vezes em que ao som de minha voz o seu coração saltitou, pronto para a dança. Mas o Senhor chegou antes, e o tomou em seus braços e já agora rodopia com ele sobre as altas colinas.

Pouco importa se as pessoas estão ausentes, o que resta é saber se onde estão, encontram-se mais felizes do que se aqui estivessem. Penso em minha amiga Chica e em seu pequeno filho... como eles ainda queriam dançar... Há tanta música nesta vida e tanta dança em nossos pés, por que a festa tem que acabar tão cedo? Mas se eu bem o conheço... este não é um Túlio qualquer, é um Túlio “Vinícius”, deve ter ido, como fazia sempre o seu xará, para uma outra festa. Nesta existência a festa não cessa pra quem festeja, nem começa para quem a espera o melhor momento para celebrar.

Os antigos gregos falavam de “o barqueiro”, aquele que vem nos conduzir deste para o outro mundo. Noutra tradição, latina, costumou-se pensar na morte como “o ceifeiro”, aquele que vem nos desarraigar do chão desta vida. Em ambos os casos, as representações da morte não são “inimigas”, são condutoras, seres tranquilos e pacientes (pra que serviria a pressa?). Na mesma canção em que Francisco chamou o sol e a lua de irmãos, disse que a morte é nossa irmã. Suponho que esteja certo. Não tenho medo que Túlio morra. Tenho medo que ele viva sem vida. Não seria ele.

Findo este texto, escrito Deus sabe para quem, citando outro Vinícius vivo e morto:

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Recife, Dia de Finados de 2009

Carta Aberta ao Prof. Dr. Erinaldo Ferreira

Paz e Bem!

Não sou afeito a palavras de adulação ou atos bajulatórios, que estas e este não sejam encarados assim, porque não têm tal natureza. Em verdade, sou orgulhoso e narcisista demais para tais baixesas. Escrevo-lhe porque me exigem a consciência e a amizade, a primeira forjada antes de meu ingresso na Faculdade Metropolitana, a segunda nascida depois. Dou-me ao trabalho de reduzir a termos, as impressões de minha alma na faustosa tarde de ontem (dia 25 de fevereiro de 2010), quando de sua defesa de tese perante a banca examinadora do Doutorado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

Foi Chico Buarque quem disse: “quem não a conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais esquece não pode reconhecer”. Durante a sua defesa reconheci o que conhecia e vi o que desconhecia. Reconheci, tanto na apresentação de seu trabalho quanto nas falas de cada um dos examinadores, a virtude de seu labor disciplinado e perseverante, que logrou produzir um escrito que, após ser aprovado pela unanimidade dos votos, teve a recomendação de publicação encaminhada pela banca à editora da Universidade. Reconheci o seu “quase-defeito” de ser simples e humilde em um ambiente onde a regra é a vaidade. Notei nas palavras dos doutores que comentavam sua tese, certo constrangimento ao perceberem que estava faltaldo algo em sua obra, a saber: como um indivíduo que faz tais descobertas, com um profundo esmero técnico e metodológico, não se arroga a nada, não se ufana de coisa alguma, a ninguém ataca e a ninguém desmerece? Quedaram-se assustados diante de uma realidade que para nós, membros do corpo desta Faculdade, é tão comesinha e constante como a sombra da mangueira que, senhora, enternece nosso campus.

Contudo, o real motivo que me animou a escrever esta missiva, não foi o que eu conhecia e, por isso, pude reconhecer. Mas aquilo que eu não conhecia e felizmente estava lá para ver e crer. Refiro-me à sua palavra de gratidão dirigida ao Prof. Geraldo Ferreira, antigo Diretor Acadêmico da Faculdade Metropolitana. Disse que agradecia a ele pelo apoio e estímulo durante todo o período de pesquisa e produção da tese. Mas, meu amigo, este agradecimento era completamente desnecessário. Aquele nobre e excelente colega não estava presente, ninguém ali era de sua relação pessoal, como poderia ele ouvir ou de algum modo chegar a ele suas sinceras palavras de gratidão? O que você fez não era preciso e só por isso é grandioso! Quando se faz o que exigem as circunstâncias ou os protocolos diplomáticos, desincumbe-se de um dever. No entanto, quando se faz o que não demandam de nós, nem de nós esperam os pequenos e mesquinhos que nos circundam, é que se revela a estatura de um ser. Amigo, talvez você não saiba, mas você é grande!

Sou grato a Deus pela graça de andarmos juntos nas pedregosas sendas da vida acadêmica e por gestarmos lado a lado o sonho de uma educação mais humanizada e eficaz.

Com carinho,

Prof. Martorelli Dantas