domingo, dezembro 18, 2011

Nota Homilética no 03

Com base em Marcos 7:18 – 23

Título. Deixando o Espírito fecundar seu coração

Introdução. Uma das grandes revoluções do século XX foi o desenvolvimento de métodos eficazes de contracepção, como a pílula anticoncepcional. Isto mudou o modo como as pessoas tratavam o tema da sexualidade, particularmente o lugar da mulher na sociedade ocidental, que assumiu um maior gerenciamento de seu próprio corpo e dos destinos de sua vida.

O problema é que as primeiras gerações de pílulas, quando usadas por períodos longos e contínuos, podiam provocar a impossibilidade de engravidar depois, quando era o desejo que isso acontecesse. O mesmo acontece com nossos corações. Tomamos tantos cuidados para que ele não engravide de nada e ninguém, protegendo-nos da dor e do desconforto que isso pode causar, que corremos o risco de vê-lo incapaz e impotente para engravidar quando seria próprio e oportuno que isso acontecesse.

Elucidação. No texto em comento hoje, Jesus adverte que o que contamina o homem não é o que ele come, mas o que entra em seu coração. E como a comida desce para o ventre, não é isso que contamina o homem. Mas será que alguma coisa ainda entra em nossos corações ou eles se tornaram impermeáveis, como se a zona pelúcida de nossos corações se tornasse insensível a qualquer operação de fecundação do Espírito?

Jesus diz que o bem e o mal são gestados em nossos corações, lá são gerados, são alimentados e crescem e, finalmente, nascem na forma de palavras e gestos. Como está o teu coração?

Desenvolvimento I. O que nos deixa o coração estéril? (com base na interpretação da Parábola do Semeador, de Marcos 4).

1. O desinteresse pelas dinâmicas espirituais, mesmo quando há agudo interesse pelas de natureza religiosa.

2. A vontade de preservar a vida, a imagem, a honorabilidade, estas mentirosas dádivas dos homens, pelas quais nos escravizam.

3. A excessiva preocupação com as fascinações das riquezas e com os cuidados deste mundo.

Desenvolvimento II. Como abrir o coração para ser fecundado e transformado pela Palavra de Deus?

1. Retenha a Palavra. Medite e ore sobre ela. Passe tempo com ela dentro de você.

2. Abra espaço no seu coração para a vida. Desinstale os cistos de morte que a mágoa (o cisto do passado) e a ansiedade (o cisto do futuro).

3. Dialogue com este pequeno e frágil ser que nasceu em você. Chame-o a existência, convide-o para ser Rei em sua vida.

Conclusão. Só assim será Natal em você. Só assim o manto do Espírito que se lançou sobre Maria também descerá sobre você. A vontade de Deus é que Jesus nasça no coração de cada um de nós e que cresça e se manifeste ao mundo. Feliz Natal!

domingo, dezembro 11, 2011

Nota Homilética 2

Cura para a hermenêutica interior: como transformar o processo de valoração dos acontecimentos que se dão em nossas vidas em fonte de ânimo e esperança.

Com base em Marcos 7:14 – 23.

Introdução. O que define se somos felizes ou infelizes, ao contrário do senso comum, não é:

Nosso estado de saúde

A quantidade ou qualidade dos amigos que possuímos

A estabilidade ou segurança de nossa vida profissional

A existência de relacionamentos harmoniosos em nosso lar

A felicidade é o resultado de uma espécie de “digestão emocional” da realidade que nos cerca e dos acontecimentos que nos sobrevêm. É sobre esta “digestão pneumo-psíquica” que eu quero lhes falar hoje.

Elucidação. Jesus nos ensinou que este é um processo que se dá no coração dos seres humanos, logo, não resulta de dados exteriores, mas da operação dos “sucos gástricos emocionais” que, continuamente, transforma aquilo e o significado daqueles que de nós se aproximam.

Quando este processo está doente os resultados são os seguintes:

Adversidade = abatimento e depressão

Vitória = presunção e orgulho

Riqueza = avareza e cobiça

Derrota = destruição da auto-imagem e da segurança

Oportunidade = prostituição e adultério

...

Quando este processo está saudável os resultados são os seguintes:

X, qualquer que seja o X = confiança no Senhor e alegria.

Desenvolvimento. Que equipamento interior é este que nos possibilita processar tudo dentro de nós de um modo saudável?

1. Certeza que valemos muito para Deus e que Ele cuida de nós;

2. Compreensão de que tudo quanto conquistamos foi dádiva do Pai. Foi assim e sempre será.

3. Respeito para com a vida e os sentimentos de todos que de nós se aproximam como terreno sagrado;

4. Ver o desamor do nosso próximo como manifestação de suas doenças;

5. Enxergar-se como colaborador de Deus para o embelezamento do mundo.

Conclusão. Tudo que chega até nós tem um destino, ou vira refugo (dejeto) ou vira vida, mas se não tivermos cuidado o que temos dentro de nossos corações pode transformar as nossas vidas em dejeto.

domingo, dezembro 04, 2011

Nota Homilética 1

Quem é o maior...?

Com base em Mateus 18:1 – 4

Introdução. O que dizemos denuncia no que nos interessamos, aquilo que nos interessa denuncia o que fazemos, bem como a força que nos move a agir, o que fazemos constrói ponto a ponto o que nós somos.

O gordo fala de comida... A vaidosa fala de beleza... O avaro de dinheiro... O cobiçoso de poder... O autocomiserado do que os outros fizeram com ele... Até o cínico religioso fala de práticas piedosas que tiveram o condão de fazer o que ele é. Na ordem inversa, nós somos o que fazemos, fazemos o que nos interessa e é do que nos interessa que nós falamos.

Elucidação. Perguntar quem é o maior serve para que os discípulos se posicionem em relação uns aos outros. Sabendo quem é o maior eles poderiam imitar os seus métodos, estabelecer alvos para suplantá-lo no que quer que tenha tornado este indivíduo “o maior”. Este é o assunto, o interesse e a agenda dos discípulos daqueles dias e de muitos de nós também. Queremos ser os maiores... os mais ricos, os mais belos, os mais poderosos, os mais piedosos, os mais influentes. São apenas variações sobre o mesmo tema.

Esta artimanha do espírito humano não era estranha a Jesus. Quando ele coloca no centro da questão uma criança, desconcerta, como já fizera tantas vezes e continua a fazer, seus discípulos. Uma criança nos dias de Jesus e na cultura em que ele usou esta figura não é o mesmo que uma criança em nossos dias e aqui onde habitamos. Aquela era uma sociedade baseada na autoridade e na experiência dos anciãos. Diferentemente da nossa, que praticamente idolatra a juventude e o frescor da pele, aquela sociedade estava alicerçada na sabedoria das cãs (dos cabelos brancos).

Desenvolvimento. Quando Jesus lhes disse que eles precisariam se converter em crianças estava propondo um caminho de retorno, uma regressão a um estado de desimportância social e econômica que representava um desafio existencial que não podemos compreender perfeitamente hoje, em que a ideia de nos tornarmos crianças de novo até, de algum modo, nos fascina. Ser criança, naquele contexto, é:

1. assumir uma posição em que se sabe não ser nem maior nem melhor do que ninguém;

2. que se aceita isto e se dispõe a existir em submissão e alegria;

3. na mais completa e absoluta dependência dos seus.

Conclusão. Esta é uma conversão sobre a qual as igrejas, em geral, não falam hoje. Elas, pelo contrário, nos estimulam a querer também sermos os maiores. Dizem que Deus nos fez para sermos cabeça e não calda, que ter é sinal da benção do Senhor em nossas vidas. Que renúncia é sinal de fraqueza ou de pecado. Mas a verdade continua a mesma dos dia do Salvador, a verdadeira libertação está em aceitar que não sabemos, que não podemos, que não conseguiremos se Deus não for por nós. Tudo isso é coisa de criança.

sábado, dezembro 03, 2011

Desculpem se eu não me expresso bem, é que eu não sou daqui.

Por Martorelli Dantas

Acho a Imbiribeira um bairro muito interessante, que combina uma área comercial com muitas residências, mas eu não sou daqui. Acho estranho como é possível que a miséria de muitos conviva com o conforto de poucos, e que estes não suponham que isto resultará em violência. Os fundos de uma loja de carros importados é habitada por pessoas que não têm sandálias, há anos que a principal avenida inunda com qualquer chuva por falta de drenagem e as autoridades são incapazes de tomar qualquer atitude efetiva, com os pesados impostos que cobram das pessoas que vivem aqui... é, eu não sou daqui.

O Recife é uma cidade cheia de cultura e vida, aqui conheci pessoas maravilhosas, que me ensinaram profundas lições, mas eu não sou daqui. Sinto-me deslocado quando percebo que à noite o centro da cidade é invadido por uma multidão de miseráveis que dormem nas marquises das lojas e igrejas. Onde estão estas pessoas de dia? Que poder de invisibilidade é este? Ou será que são meus olhos que não os querem ver, para não me fazer sofrer? O que sei é que eles estão lá, todos os dias, em todos os anos, desde que eu era criança tem sido assim. Nunca vou compreender como é mais fácil encontrar pessoas dispostas a dar sopa pra cem do que mudar a vida de um, sem perceber que de um em um se restauram cem. Mas é natural que eu não consiga decodificar isso de modo inteligível para mim, eu não sou daqui.

O Brasil é um país paradisíaco, as mais belas paisagens do mundo, recheadas de um povo simples e alegre, fraterno e hospitaleiro, mas eu não sou daqui. É impossível que a corrupção seja um mal endêmico assim. Que tenhamos que trocar ministros todos os dias, porque cada um que colocamos traz consigo os mesmos vícios que encontra incrustrados nas repartições e pastas que assumem. Quando digo que não sou daqui, não é porque me considere melhor que os demais, a minha estrangeirice se manifesta em não achar isso nem normal nem aceitável. Isso clama em mim por rebeldia, por constrangimento coletivo, por um mea culpa nacional. Estou certo que isso vai acabar, que um dia já não será mais assim, mas acho que eu não estarei aqui pra ver, porque eu não sou daqui.

E este planeta azul que chamamos Terra? Que como diz Caetano, carrega em seu nome o nome de sua carne. Que lugar lindo! Rodei seus continentes, amei lugares e amei em lugares maravilhosos, mas eu também não sou daqui. Nunca vou compreender porque as pessoas precisam esconder seus sentimentos, carecem de bens que lhes atribua significado e importância, não percebem que o valor de alguém está nos valores que carrega em seu coração. Pra que usar um indivíduo se é possível brincar e sorrir com ele, sentar à sombra de uma árvore e dividir uma maçã, um pão com mortadela... Há tanta felicidade às mãos, mas as mãos não cessam de juntar e defender, de lutar e tomar, pra findar sempre dizendo adeus.

Ao longo destes quarenta e três anos em que estou aqui, sempre soube que chegaria o momento de voltar pro meu lugar, isso não me angustia. Só quero que, de algum modo, eu possa contribuir para melhor colorir estes lugares por onde peregrinei e continuo a fazê-lo. Muitas vezes encontrei pessoas que também não são daqui, em alguns momentos os consolei, noutros fui por eles consolado. Talvez você que está lendo este texto, também se sinta como nós, deslocado, fora do lugar... não tenha medo, apenas floresça e floreie, esta é a nossa missão.

segunda-feira, novembro 21, 2011

Senso de Sobrevivência Institucional (SSI) X Senso Comum Teórico dos Teólogos (SCTT)

Eu entrei no Seminário Presbiteriano do Norte bem novinho, tinha 18 anos, mas uma coisa eu já tinha, o tal do senso de sobrevivência institucional (SSI). O que é isso? É a capacidade de saber que há coisas que não devem ser ditas ou feitas, caso você queira sobreviver em uma instituição. Muito embora o ambiente em que eu estudei, no final dos anos 80, beirasse o fascismo, onde imperava o policiamento intelectual e o denuncismo, eu consegui concluir o curso, em grande parte, pela compreensão e companheirismo de meu Tutor, o Rev. Edijéce Martins Ferreira.

Era claro para mim, que havia alunos que não tinham o mínimo de SSI. Lembro de um colega, que em uma aula de Escatologia, fez a seguinte intervenção, na presença de nosso carinhoso mestre, Rev. Éber Lenz César: : “com a licença da palavra... eu acho esse negócio de ser amilenista ou pré-milenista uma merda. Isso não salva a alma de ninguém!" Foi a primeira vez que um “merda” fora dito em uma das sacrossantas salas de aula do SPN e o professor, ruborizado, bradou: Eu não lhe dou licença para usar esta palavra aqui não! Já para fora!!! Foi este mesmo amigo (querido amigo) que em uma conversa com o, então, diretor do Seminário, respondeu à seguinte pergunta retórica “você sabe quem me colocou no cargo que eu ocupo, meu filho?”, com a assertiva dura e seca: “Sei sim, foi o Diabo!!!”. Eu não preciso lhes dizer que ele não é mais pastor presbiteriano, mas chegou a ser... imaginem vocês...

No final das contas, se você não adulterar, roubar ou matar, acaba sendo aceito como pastor em alguma denominação evangélica. Só não cometa um destes três pecados capitais. Ah... tem mais um, o da heresia. Não pode ser muito herege. Um pouco, quem não é?! Mas tem aquelas doutrinas, sobre as quais não se pode transigir. Não porque sejam pilares da fé, mas porque são as da moda, eleitas pelos “caciques do dia” como as inegociáveis. Nos dez anos em que fui professor de Teologia Sistemática e Hermenêutica do SPN (de 1994 a 2003), eu fiquei assustado com os efeitos que o excesso de SSI pode provocar nos jovens estudantes de Teologia.

Eles aprendem nas suas igrejas locais as respostas certas, elas estão no Catecismo de Westminster, e sabem que aquele é um lugar seguro para se estar e pensar. Nada fora deste estreito enquadramento é chão onde se possa pisar. Em minhas aulas, eu, frequentemente desafiava os alunos a questionarem o fundamento bíblico de suas crenças, verificando se aquilo que confessavam estava na e de acordo com as Escrituras. Mas era, e me parece que continua a ser, um esforço grande demais para a maioria deles, caminhar no espaço de oxigênio rarefeito de uma reflexão pessoal e livre.

Uma brincadeira que eu tinha prazer de fazer, era citar as Institutas da Religião Cristã, de João Calvino e pedir para que eles comentassem. Mas não qualquer citação, as cabeludas, as que não se adequam com o “senso comum teórico dos teólogos” (SCTT), adaptando uma conceito de Luiz Alberto Warat, feita para os juristas. Como pouquíssimos haviam lido Calvino e eram calvinistas de segunda ou terceira mão (explicando... acreditam no calvinismo que ouviram de alguém, que ouviu de alguém, que teria lido, que Calvino disse algo mais ou menos assim...), era fácil chocá-los. Como no dia em que mencionei o ensino de Calvino de que Jesus, após a sua morte, foi pessoalmente ao inferno para sofrer, “como que de mãos atadas”, uma vez que a nós estava destinado sofrer, morrer e ir para o inferno, as três coisas fez Jesus por nós.

O que dizer disso?! Era uma confusão só. O SSI não permitia dizer simplesmente que Calvino estava errado, mas o senso comum teórico dos teólogos dizia que a afirmação não fazia sentido (já estou vendo o número de e-mails que eu vou receber de calvinistas me perguntando em que parte das Institutas Calvino diz isso. Vá procurar, vá ler!). O grande problema é que eles não tinham escutado aquilo dos púlpitos de suas igrejas e nem tinham lido nos textos “semi-devocionais” dos calvinistas da moda de agora. E agora? Era justamente isso que eu queria lhes ensinar, que é preciso, nas palavras do Pe. Antonio Vieira, mais do que “pregar sobre os santos, mas pregar como os santos” (Sermão aos Peixes), não apenas pensar sobre o que disseram os nossos mestres e gurus, mas pensar como eles pensaram, criticar as práticas e os dogmas dominantes, como eles fizeram.

Quando deixei a Igreja Presbiteriana do Brasil, no final de 2003, havia recebido a honra de ser o paraninfo das três últimas turmas de bacharéis em teologia do SPN (são turmas anuais e não semestrais), havia sido por duas legislaturas presidente do Sínodo Central de Pernambuco e era Secretário Nacional de Mocidades, mas estava triste. Via crescer e se desenvolver nas mente de meus jovens amigos o nefasto poder da síndrome do SSI, ela havia formatado e travado de tal modo a mente dos meninos que era notório o clima de medo e insegurança em minhas aulas. Poucos tinham a coragem de me questionar ou debater comigo minhas posições e afirmações, mas não faltavam os que faziam duras críticas ao meu ensino, logo após a minha saída da sala, só pra deixar marcada sua posição ortodoxa e tradicional.

Deixei a IPB de tristeza. Tristeza com a política eclesiástica, sobre o que eu não preciso dizer muito, basta dizer que é só política, nada mais que política. E tristeza pela educação teológica, que já não conseguia formar pensadores ousados e autênticos, mas meros repetidores do que é seguro e lugar comum. A tristeza ainda não passou, mas convive com esperança de que não seja mais assim. Deixei também a IPB, a igreja de meus pais e avós, porque quero continuar pensando, quero me contradizer, ser incoerente, ou seja, quero ser eu, quero ser livre!

Com carinho,

Martorelli Dantas

sábado, junho 11, 2011

Caro mano Anamim,

Paz e Bem!

Faz muito tempo que conversamos por este maravilhoso (e perigoso) meio que é a Internet. Não vou dizer quando começaram as nossas conversas, para não denunciar as nossas idades. Sua erudição e capacidade argumentativa sempre me chamaram a atenção e seria profundamente temerário, construir qualquer querela contra você, sobretudo, quando há questões de natureza jurídica presentes, área em que você atua há muito tempo. Se aceito fazer algumas considerações sobre o seu texto, é na expectativa que isto lhe provoque a nos ensinar ainda mais, sobre as coisas das quais só ouvimos falar.

Você disse que “uma boa parte da IPB ressente” minha falta. Talvez a parte da IPB que não ressente a minha falta, não seja a parte boa :-). Sabe aquele cara que perde um amigo, mas não perde uma piada? De modo nenhum quero perder a sua amizade. O meu afastamento do meio presbiteriano foi uma separação amigável, um divórcio consensual. Eu não queria mais ficar, e tinha um monte de gente querendo que eu saísse. Estamos todos felizes agora. Mas tenho a vaidade de dizer que fui eu que pedi pra sair.

Ela é, e sempre será, a igreja de meus pais e avós. Meu filho mais velho, Thiago, frequenta a Igreja Presbiteriana da Madalena. Quem sabe à procura das raízes perdidas de seu pai. Tenho pela denominação, e por muitos de seus membros e pastores profundo respeito e admiração. Só não dá mais pra mim e sou grato a Deus por poder decidir não ficar. É triste quando não temos opções. Este nem é o seu caso nem o meu. Eu fora e você dentro, estamos nos lugares para onde nos conduziram nossas convicções.

Mas já falei demais sobre amenidades e o povo quer ver sangue :-). Permita-me iniciar comentando sobre a relação construída no Brasil entre o Legislativo e o Judiciário, particularmente falando sobre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Poderia retroceder muito mais do que isso, mas recordemos a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que promoveu a reforma do Judiciário e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, entre outras coisas, a figura da súmula vinculante.

Para os que nos lêem e não são familiarizados às terminologias jurídicas, lembremos que súmulas vinculantes são sínteses jurisprudenciais produzidas pela Corte Suprema, que devem ser aplicadas pelos tribunais e juízes de todo país. Esta é uma inovação que visou promover celeridade nos processos que tramitam nas varas e tribunais. Mas as conseqüências jurídicas são, como você sabe, bem mais graves. Representa a limitação do princípio do “livre convencimento do juiz”, que nos casos em que houver relação com a matéria sumulada de modo vinculante, terá que aplicar a súmula, como quem aplica texto de lei.

É a porta pela qual ingressou em nosso sistema romano-germânico (Civil Law) elementos típicos do Common Law, no qual a jurisprudência ocupa o lugar de fonte primária do direito. Note que a iniciativa foi do Poder Legislativo, que pelo solene rito do poder constituinte derivado de atualizar o texto constitucional, fortaleceu o judiciário. Ele gostou e deu azo à proliferação de tal expediente. Vale a pena notar como a cada ano foi maior o número de súmulas vinculantes produzidas e continuará assim, ao que tudo indica.

Um outro episódio que merece ser referido é a situação de antinomia (conflito entre normas) que subiu à apreciação do STF, entre o Pacto de São José da Costa Rica e o art. 5o, LXVII da Constituição Federal. O referido pacto internacional ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 1992, através do Decreto-Legislativo n. 27 daquele ano, o qual, de conformidade com preceito da Carta Magna, deu status de texto constitucional a tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que venham a ser aprovados pelo Congresso Nacional brasileiro de acordo com o rito próprio das Emendas Constitucionais (art. 5o, LXXVII, § 3o da CF).

O conflito foi resolvido e deu ensejo à Súmula Vinculante n. 25, in verbis: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Estranhará o leitor, não afeito ao fenômeno chamado de Ativismo do Judiciário, que tenha deste modo o STF “alterado o texto da Constituição”, que prevê no art. 5o, LXVII, já referido, haver dois casos de prisão civil por dívida, que são o inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia e o depositário infiel. De fato o STF não mudou o texto, ele continua lá com todas as letras e qualquer um pode ler, o que fez foi retirar a eficácia do dispositivo no que tange ao depositário infiel. Deste modo, implementou o que eu poderia chamar de um ato legislativo negativo, por retirar a eficácia de parte do texto constitucional.

Vou abusar da sua paciência e da dos demais leitores (espero que haja) só mais um pouco, para lembrar o novo entendimento adotado pelo STF no que toca ao mandado de injunção. Importante instrumento constitucional, previsto no art. 5o, LXXI da Constituição Federal, o mandado de injunção tem por objetivo manifestar-se “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Durante quase 20 anos, o STF compreendeu que o efeito do mandado de injunção seria um ato pelo qual a Corte comunicasse ao Congresso Nacional a sua omissão na produção da lei regulamentadora dos direitos constitucionalmente previstos, e demandasse daquele Poder que atendesse a tal necessidade. Contudo, como é cediço, hoje o STF entende que cabe a ele a produção da norma ausente, devendo o Excelso Pretório produzir ele mesmo a norma que falta, desenvolvendo a eficácia, até então limitada da norma constitucional, plenificando seus efeitos.

Disse tudo isso e agora volto ao nosso tema inicial. O STF extrapolou sua competência ao reconhecer a união estável entre homossexuais, desrespeitando o disposto no § 3o, do art. 226 da CF? Pode ser, mas ao fazê-lo deu continuidade a uma prática que vem sendo sua marca desde o início da presidência do ministro Gilmar Mendes e segue. Dizer que tal decisão é fruto das pressões feitas pelos gays infiltrados nos bastidores do poder judiciário, me parece um pouco de “teoria da conspiração”. Mas pode ser... tudo sempre pode ser. Mas para alcunhar de ilegalidade esta decisão por ter produzido, no dizer de Gilmar, uma “mutação constitucional sem redução de texto”, teríamos que fazer o mesmo com boa parte das decisões que todos os dias são tomadas em nosso país.

Se esta hipertrofia do Judiciário é boa ou é ruim, não nos cabe discutir na presente missiva. Mas a decisão é consistente com um modelo que não foi inventado pra isso. Eu, particularmente, acho que a decisão, na prática, não muda muita coisa na vida dos homossexuais. Eles já viviam juntos mesmo e tinham encontrados outros meios legais de compartilhar seu patrimônio, mas facilita pra eles, isto é um fato. Contudo não é um estímulo a nada, entende? Não vai aumentar o número de gays e lésbicas de nosso país. Mas pode fazer com que a bancada evangélica e católica se mobilize para uma “cruzada por Deus, pela Família e pela Propriedade” que, na forma de lei, derrube o entendimento do STF. Será uma briga grande, cara e constrangedora que não mudará nada, mas elegerá muitos.

Eu concordo com você que o homossexualismo é contrário à natureza, mas o que isso provoca em mim é um sentimento completamente diferente do que eu vejo na maioria dos cristãos. Eu fico pensando assim: caramba, como deve ser difícil a vida de quem olha pra debaixo do umbigo e vê um órgão feito para a relação heterossexual e sente desejos por pessoas do mesmo sexo. Como em sua alma deve se instalar, desde muito cedo, um doloroso conflito, que por anos passará em silêncio e agonia. Quantas chacotas, quantas risadas, quanta violência contra o corpo e contra a alma...

Anamim, meu amigo, creio que Deus tem poder para libertar os homossexuais deste estado de contradição e dor, como tem pra me livrar da glutonaria que me faz pesar 120 kg (à sombra), mas enquanto nem eles nem eu somos libertos, recebemos o amor misericordioso de Deus, que nos faz sentir seus filhos, apesar de tudo e que nos chama para a contínua reconciliação, que, de uma vez por todas, foi conquistada por Jesus na cruz do Calvário. Se depender de mim, quero proclamar bem alto, com toda a força de minha alma: senhor Gay, senhora Lésbica! vocês sabem que Deus ama vocês e que Cristo morreu para que vocês possam ter comunhão com Ele? Deus não tem raiva de vocês, Ele os quer perto. Vamos orar juntos e vamos pedir perdão pelos nossos pecados, verdadeiramente arrependidos, e vamos pedir que Ele nos dirija, passo a passo, na direção do Varão Perfeito.

Quando vier ao Recife, vamos tomar uma Kaipiroska e comeremos camarão ao alho e óleo, no Bar do Gaiamum Gigante, que essas coisas todas me deram vontade de chorar.

Com carinho,

Martorelli Dantas

frater et peccator

Samuel, mano amado,

Paz e Bem!

Não quis zombar de nenhuma das pessoas que concordaram com seu post, só quis lhe aconselhar a nunca posicionar-se para receber aplausos, a não assumir posturas pela conveniência de saber que isto será apreciado por um grupo de pessoas com as quais você esteja histórica e momentaneamente identificado. Só você pode saber se esta é ou não uma tentação que lhe assalta. A mim visita a cada manhã. Nem mesmo estou dizendo que é este o caso do texto que agora debatemos. Antes, disse que tenho convicção que o seu entendimento exarado é a manifestação daquilo que crê seu coração.

Só ingressei neste debate porque você me pediu que comentasse o seu texto e foi isso que fiz. Tentei, em minha primeira intervenção, ser claro e cortes, mas posso não ter conseguido. É sempre difícil fazê-lo em polêmicas, e mesmo sendo, é difícil ser compreendido deste modo pelo contendor, fruto do próprio espírito em que o confronto de idéias acontece. Pois, de pronto, peço perdão a quem de qualquer modo e por qualquer palavra tenha ofendido. Até porque, Dom Quixote é o meu herói preferido, com o qual me identifico muito – o cavaleiro da triste figura.

Você diz que me falta “uma maior base apologética”. Tem toda razão! Faz tempo que desisti de todo e qualquer tipo de apologética. Não defendo a minha fé, dou testemunho dela. Não sou um tipo de templário, um guerreiro sagrado, em defesa de Deus e de sua igreja. Deus não precisa de baluartes e a Igreja encontra como maior ameaça à sua saúde e integridade as forças que militam dentro dela. E eu não tenho ânimo para lutar com meus irmãos, pelo contrário, quero andar com eles, estejam eles, a meu juízo, certos ou errados, posto que as minhas convicções são apenas as minha convicção, não fui constituído pelo Senhor como controler da ortodoxia mundial, mas há quem tenha ânimo pra isso.

Mais uma vez lhe dou razão quando diz que não fazemos exegese do mesmo jeito. Minha exegese é tal que leva em consideração o texto em seu contexto histórico e supõe que ele diz o que pretendeu o seu autor e entenderam os leitores originais. Quando pego o Salmo 2 em minhas mãos (e o fiz para compartilhá-lo neste momento), vejo um mundo dividido entre judeus e gentios – “Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?” (v.1) – o que denota uma cosmovisão judaica, na qual não nos vemos inseridos. Hoje não temos uma nação de Deus em contraposição aos povos ímpios, o que temos é o povo de Deus espalhado no meio de todos os povos.

Neste texto o rei tem endereço certo, está constituído sobre o “santo monte Sião” (v.6), uma clara referência a cidade de Jerusalém, então capital de Israel. O salmo todo é uma proclamação da superioridade da nação de Israel sobre os outros povos, do rei dos filhos de Abraão sobre os demais – “os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu ungido” (v.2). Como eu disse, nota-se em seu texto esta melancolia em relação ao antigo estado de Israel. O desafio da igreja de nossos dias não é reabilitar a glória dos judeus, como querem alguns dispensacionalistas, mas aprendermos a sermos seguidores de Jesus, como Paulo entre os romanos.

É justamente a figura de Paulo que pode muito nos ajudar a entender qual deve ser a nossa postura em relação à questão do homossexualismo em nossos dias. Ele foi apóstolo num mundo greco-romano, em que a prática do homossexualismo era absolutamente comum e corriqueira, mas não o vemos fazendo denúncias contra as autoridades romanas que praticavam a pederastia, ou contra os gregos e seus efêbos. Ele condena o homossexualismo como pecado, e diz que quem se converte deve abandonar tal conduta. Mas ele, nas muitas defesas que apresentou perante autoridades romanas, jamais tomou um tom acusatorial, antes deu testemunho de sua fé e do que Deus fizera por ele. O discurso de Paulo era de exortação e ensino para a igreja. Não há uma carta ao Senado Romano, mas aos irmãos de Roma.

Fiquei pensando muito da figura de Darth Vader com uma Bíblia na mão, com a qual você ilustrou o seu post. Até desconfio quem é que está por baixo da fantasia preta ;-), mas ela pode ser muito perigosa, mais do que uma leitura rápida possa denunciar. Hoje a mais ameaçadora força a comprometer a paz mundial é o fundamentalismo religioso, tanto islâmico quanto cristão. A resposta que tem sido dada à brutalidade oriunda de grupos mulçumanos é a contrapartida, na mesma medida, de grupos protestantes. Mal por mal. A própria referência a Star Wars pode deixar escapar um maniqueísmo, que divide o mundo entre o lado negro da Força e o lado bom da Força. Eu vivo num mundo em que há muitas forças, mas a Força não está dividida.

Com carinho e devendo uma pizza,

Martorelli Dantas

P.S.: um dia eu subscrevi a Confissão de Fé de Westminster como a correta interpretação das Escrituras, depois, pensei melhor, e resolvi interpretar as Escrituras eu mesmo.