sábado, junho 11, 2011

Caro mano Anamim,

Paz e Bem!

Faz muito tempo que conversamos por este maravilhoso (e perigoso) meio que é a Internet. Não vou dizer quando começaram as nossas conversas, para não denunciar as nossas idades. Sua erudição e capacidade argumentativa sempre me chamaram a atenção e seria profundamente temerário, construir qualquer querela contra você, sobretudo, quando há questões de natureza jurídica presentes, área em que você atua há muito tempo. Se aceito fazer algumas considerações sobre o seu texto, é na expectativa que isto lhe provoque a nos ensinar ainda mais, sobre as coisas das quais só ouvimos falar.

Você disse que “uma boa parte da IPB ressente” minha falta. Talvez a parte da IPB que não ressente a minha falta, não seja a parte boa :-). Sabe aquele cara que perde um amigo, mas não perde uma piada? De modo nenhum quero perder a sua amizade. O meu afastamento do meio presbiteriano foi uma separação amigável, um divórcio consensual. Eu não queria mais ficar, e tinha um monte de gente querendo que eu saísse. Estamos todos felizes agora. Mas tenho a vaidade de dizer que fui eu que pedi pra sair.

Ela é, e sempre será, a igreja de meus pais e avós. Meu filho mais velho, Thiago, frequenta a Igreja Presbiteriana da Madalena. Quem sabe à procura das raízes perdidas de seu pai. Tenho pela denominação, e por muitos de seus membros e pastores profundo respeito e admiração. Só não dá mais pra mim e sou grato a Deus por poder decidir não ficar. É triste quando não temos opções. Este nem é o seu caso nem o meu. Eu fora e você dentro, estamos nos lugares para onde nos conduziram nossas convicções.

Mas já falei demais sobre amenidades e o povo quer ver sangue :-). Permita-me iniciar comentando sobre a relação construída no Brasil entre o Legislativo e o Judiciário, particularmente falando sobre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Poderia retroceder muito mais do que isso, mas recordemos a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que promoveu a reforma do Judiciário e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, entre outras coisas, a figura da súmula vinculante.

Para os que nos lêem e não são familiarizados às terminologias jurídicas, lembremos que súmulas vinculantes são sínteses jurisprudenciais produzidas pela Corte Suprema, que devem ser aplicadas pelos tribunais e juízes de todo país. Esta é uma inovação que visou promover celeridade nos processos que tramitam nas varas e tribunais. Mas as conseqüências jurídicas são, como você sabe, bem mais graves. Representa a limitação do princípio do “livre convencimento do juiz”, que nos casos em que houver relação com a matéria sumulada de modo vinculante, terá que aplicar a súmula, como quem aplica texto de lei.

É a porta pela qual ingressou em nosso sistema romano-germânico (Civil Law) elementos típicos do Common Law, no qual a jurisprudência ocupa o lugar de fonte primária do direito. Note que a iniciativa foi do Poder Legislativo, que pelo solene rito do poder constituinte derivado de atualizar o texto constitucional, fortaleceu o judiciário. Ele gostou e deu azo à proliferação de tal expediente. Vale a pena notar como a cada ano foi maior o número de súmulas vinculantes produzidas e continuará assim, ao que tudo indica.

Um outro episódio que merece ser referido é a situação de antinomia (conflito entre normas) que subiu à apreciação do STF, entre o Pacto de São José da Costa Rica e o art. 5o, LXVII da Constituição Federal. O referido pacto internacional ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 1992, através do Decreto-Legislativo n. 27 daquele ano, o qual, de conformidade com preceito da Carta Magna, deu status de texto constitucional a tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que venham a ser aprovados pelo Congresso Nacional brasileiro de acordo com o rito próprio das Emendas Constitucionais (art. 5o, LXXVII, § 3o da CF).

O conflito foi resolvido e deu ensejo à Súmula Vinculante n. 25, in verbis: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Estranhará o leitor, não afeito ao fenômeno chamado de Ativismo do Judiciário, que tenha deste modo o STF “alterado o texto da Constituição”, que prevê no art. 5o, LXVII, já referido, haver dois casos de prisão civil por dívida, que são o inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia e o depositário infiel. De fato o STF não mudou o texto, ele continua lá com todas as letras e qualquer um pode ler, o que fez foi retirar a eficácia do dispositivo no que tange ao depositário infiel. Deste modo, implementou o que eu poderia chamar de um ato legislativo negativo, por retirar a eficácia de parte do texto constitucional.

Vou abusar da sua paciência e da dos demais leitores (espero que haja) só mais um pouco, para lembrar o novo entendimento adotado pelo STF no que toca ao mandado de injunção. Importante instrumento constitucional, previsto no art. 5o, LXXI da Constituição Federal, o mandado de injunção tem por objetivo manifestar-se “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Durante quase 20 anos, o STF compreendeu que o efeito do mandado de injunção seria um ato pelo qual a Corte comunicasse ao Congresso Nacional a sua omissão na produção da lei regulamentadora dos direitos constitucionalmente previstos, e demandasse daquele Poder que atendesse a tal necessidade. Contudo, como é cediço, hoje o STF entende que cabe a ele a produção da norma ausente, devendo o Excelso Pretório produzir ele mesmo a norma que falta, desenvolvendo a eficácia, até então limitada da norma constitucional, plenificando seus efeitos.

Disse tudo isso e agora volto ao nosso tema inicial. O STF extrapolou sua competência ao reconhecer a união estável entre homossexuais, desrespeitando o disposto no § 3o, do art. 226 da CF? Pode ser, mas ao fazê-lo deu continuidade a uma prática que vem sendo sua marca desde o início da presidência do ministro Gilmar Mendes e segue. Dizer que tal decisão é fruto das pressões feitas pelos gays infiltrados nos bastidores do poder judiciário, me parece um pouco de “teoria da conspiração”. Mas pode ser... tudo sempre pode ser. Mas para alcunhar de ilegalidade esta decisão por ter produzido, no dizer de Gilmar, uma “mutação constitucional sem redução de texto”, teríamos que fazer o mesmo com boa parte das decisões que todos os dias são tomadas em nosso país.

Se esta hipertrofia do Judiciário é boa ou é ruim, não nos cabe discutir na presente missiva. Mas a decisão é consistente com um modelo que não foi inventado pra isso. Eu, particularmente, acho que a decisão, na prática, não muda muita coisa na vida dos homossexuais. Eles já viviam juntos mesmo e tinham encontrados outros meios legais de compartilhar seu patrimônio, mas facilita pra eles, isto é um fato. Contudo não é um estímulo a nada, entende? Não vai aumentar o número de gays e lésbicas de nosso país. Mas pode fazer com que a bancada evangélica e católica se mobilize para uma “cruzada por Deus, pela Família e pela Propriedade” que, na forma de lei, derrube o entendimento do STF. Será uma briga grande, cara e constrangedora que não mudará nada, mas elegerá muitos.

Eu concordo com você que o homossexualismo é contrário à natureza, mas o que isso provoca em mim é um sentimento completamente diferente do que eu vejo na maioria dos cristãos. Eu fico pensando assim: caramba, como deve ser difícil a vida de quem olha pra debaixo do umbigo e vê um órgão feito para a relação heterossexual e sente desejos por pessoas do mesmo sexo. Como em sua alma deve se instalar, desde muito cedo, um doloroso conflito, que por anos passará em silêncio e agonia. Quantas chacotas, quantas risadas, quanta violência contra o corpo e contra a alma...

Anamim, meu amigo, creio que Deus tem poder para libertar os homossexuais deste estado de contradição e dor, como tem pra me livrar da glutonaria que me faz pesar 120 kg (à sombra), mas enquanto nem eles nem eu somos libertos, recebemos o amor misericordioso de Deus, que nos faz sentir seus filhos, apesar de tudo e que nos chama para a contínua reconciliação, que, de uma vez por todas, foi conquistada por Jesus na cruz do Calvário. Se depender de mim, quero proclamar bem alto, com toda a força de minha alma: senhor Gay, senhora Lésbica! vocês sabem que Deus ama vocês e que Cristo morreu para que vocês possam ter comunhão com Ele? Deus não tem raiva de vocês, Ele os quer perto. Vamos orar juntos e vamos pedir perdão pelos nossos pecados, verdadeiramente arrependidos, e vamos pedir que Ele nos dirija, passo a passo, na direção do Varão Perfeito.

Quando vier ao Recife, vamos tomar uma Kaipiroska e comeremos camarão ao alho e óleo, no Bar do Gaiamum Gigante, que essas coisas todas me deram vontade de chorar.

Com carinho,

Martorelli Dantas

frater et peccator

Samuel, mano amado,

Paz e Bem!

Não quis zombar de nenhuma das pessoas que concordaram com seu post, só quis lhe aconselhar a nunca posicionar-se para receber aplausos, a não assumir posturas pela conveniência de saber que isto será apreciado por um grupo de pessoas com as quais você esteja histórica e momentaneamente identificado. Só você pode saber se esta é ou não uma tentação que lhe assalta. A mim visita a cada manhã. Nem mesmo estou dizendo que é este o caso do texto que agora debatemos. Antes, disse que tenho convicção que o seu entendimento exarado é a manifestação daquilo que crê seu coração.

Só ingressei neste debate porque você me pediu que comentasse o seu texto e foi isso que fiz. Tentei, em minha primeira intervenção, ser claro e cortes, mas posso não ter conseguido. É sempre difícil fazê-lo em polêmicas, e mesmo sendo, é difícil ser compreendido deste modo pelo contendor, fruto do próprio espírito em que o confronto de idéias acontece. Pois, de pronto, peço perdão a quem de qualquer modo e por qualquer palavra tenha ofendido. Até porque, Dom Quixote é o meu herói preferido, com o qual me identifico muito – o cavaleiro da triste figura.

Você diz que me falta “uma maior base apologética”. Tem toda razão! Faz tempo que desisti de todo e qualquer tipo de apologética. Não defendo a minha fé, dou testemunho dela. Não sou um tipo de templário, um guerreiro sagrado, em defesa de Deus e de sua igreja. Deus não precisa de baluartes e a Igreja encontra como maior ameaça à sua saúde e integridade as forças que militam dentro dela. E eu não tenho ânimo para lutar com meus irmãos, pelo contrário, quero andar com eles, estejam eles, a meu juízo, certos ou errados, posto que as minhas convicções são apenas as minha convicção, não fui constituído pelo Senhor como controler da ortodoxia mundial, mas há quem tenha ânimo pra isso.

Mais uma vez lhe dou razão quando diz que não fazemos exegese do mesmo jeito. Minha exegese é tal que leva em consideração o texto em seu contexto histórico e supõe que ele diz o que pretendeu o seu autor e entenderam os leitores originais. Quando pego o Salmo 2 em minhas mãos (e o fiz para compartilhá-lo neste momento), vejo um mundo dividido entre judeus e gentios – “Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?” (v.1) – o que denota uma cosmovisão judaica, na qual não nos vemos inseridos. Hoje não temos uma nação de Deus em contraposição aos povos ímpios, o que temos é o povo de Deus espalhado no meio de todos os povos.

Neste texto o rei tem endereço certo, está constituído sobre o “santo monte Sião” (v.6), uma clara referência a cidade de Jerusalém, então capital de Israel. O salmo todo é uma proclamação da superioridade da nação de Israel sobre os outros povos, do rei dos filhos de Abraão sobre os demais – “os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu ungido” (v.2). Como eu disse, nota-se em seu texto esta melancolia em relação ao antigo estado de Israel. O desafio da igreja de nossos dias não é reabilitar a glória dos judeus, como querem alguns dispensacionalistas, mas aprendermos a sermos seguidores de Jesus, como Paulo entre os romanos.

É justamente a figura de Paulo que pode muito nos ajudar a entender qual deve ser a nossa postura em relação à questão do homossexualismo em nossos dias. Ele foi apóstolo num mundo greco-romano, em que a prática do homossexualismo era absolutamente comum e corriqueira, mas não o vemos fazendo denúncias contra as autoridades romanas que praticavam a pederastia, ou contra os gregos e seus efêbos. Ele condena o homossexualismo como pecado, e diz que quem se converte deve abandonar tal conduta. Mas ele, nas muitas defesas que apresentou perante autoridades romanas, jamais tomou um tom acusatorial, antes deu testemunho de sua fé e do que Deus fizera por ele. O discurso de Paulo era de exortação e ensino para a igreja. Não há uma carta ao Senado Romano, mas aos irmãos de Roma.

Fiquei pensando muito da figura de Darth Vader com uma Bíblia na mão, com a qual você ilustrou o seu post. Até desconfio quem é que está por baixo da fantasia preta ;-), mas ela pode ser muito perigosa, mais do que uma leitura rápida possa denunciar. Hoje a mais ameaçadora força a comprometer a paz mundial é o fundamentalismo religioso, tanto islâmico quanto cristão. A resposta que tem sido dada à brutalidade oriunda de grupos mulçumanos é a contrapartida, na mesma medida, de grupos protestantes. Mal por mal. A própria referência a Star Wars pode deixar escapar um maniqueísmo, que divide o mundo entre o lado negro da Força e o lado bom da Força. Eu vivo num mundo em que há muitas forças, mas a Força não está dividida.

Com carinho e devendo uma pizza,

Martorelli Dantas

P.S.: um dia eu subscrevi a Confissão de Fé de Westminster como a correta interpretação das Escrituras, depois, pensei melhor, e resolvi interpretar as Escrituras eu mesmo.