segunda-feira, junho 18, 2007

Jesus é leigo nisso...

Uma expressão simples como esta (Jesus é leigo nisso...), pode criar grande desconforto, isto porque a primeira idéia que nos vêm à cabeça quando ouvimos ou lemos o termo ‘leigo’ é a de alguém que ignora ou desconhece detalhes técnicos de alguma especialidade do saber. E tendemos a considerar que Jesus em seu estado glorioso, restituída toda a majestade de que se revestia antes da encarnação, tem pleno conhecimento de todas as coisas. Contudo, há outro significado para a palavra leigo na qual o Mestre se vê continuamente confinado.
Antes de tentarmos explorar esta acepção da palavra, bom seria que pudéssemos visitar a sua origem. ‘Leigo’ vem do latim laicos, que por sua vez resulta da romanização da expressão grega laos, que significa povo. O que se depreende deste caminhar do vocábulo é que em sua pré-história ‘leigo’ significa alguém que é do povo, ou que não se distingue deste por qualquer qualidade singular. É neste sentido que dizemos que a igreja se divide em clero (conjunto de pessoas revestidas de autoridade sacerdotal, tais como padres, pastores, bispos, arcebispos etc.) e leigos (o somatório de todos aqueles indivíduos que não se encaixam no primeiro grupo).
Esta separação no corpo da igreja é expressão da aplicação nela da estrutura organizacional do mundo judeu do primeiro século. Lá tínhamos o clero (composto pelo sumo-sacerdote, por sacerdotes e levitas) e tínhamos as autoridades doutrinárias e dogmáticas (formada pelos escribas e doutores da Lei), as quais eram vinculadas às diferentes seitas judaicas que pululam no tempo de Cristo e mostram sua face nas páginas dos evangelhos (fariseus, saduceus, essênios, zelotes e herodianos) e o povo em geral. Folheando as páginas dos quatro testemunhos neotestamentários da vida de Jesus o encontramos em constante diálogo (pra não dizer conflito) com estas figuras, particularmente, com os fariseus e seus escribas.
Quando afirmamos que Jesus é leigo, queremos nos referir ao fato de que, considerando tal estratificação da religião judaica do tempo da plenitude (como Paulo chama em Gl. 4:4), ele não se encontra nem entre o clero, nem entre os doutores da Lei. O fato inconteste é que ele é um homem do povo, filho de uma casa simples, que nasce numa estrebaria de Belém e vive numa cidade não muito melhor do que ela, que é Nazaré. Cresce como um menino judeu e faz a sua cerimônia de maioridade aos 12 anos, como é costume até hoje e aprende um ofício, se torna carpinteiro, seguindo aquela ocupação que era tradição familiar.
Não apenas era leigo, um homem do povo, mas quando empreende a vocação de seus doze seguidores mais próximos, vai buscá-los nesta mesma larga faixa da sociedade. Chama pescadores, cobradores de impostos e outros trabalhadores braçais e figuras polêmicas aos olhos dos religiosos, como o eram os publicanos. Eram todos galileus, seus vizinhos e discípulos de João Batista, seu primo. Indubitavelmente notamos que as bases da igreja cristã são lançadas sobre as figuras dos leigos, e isso não é acidental, mas programático.
O que Cristo parece querer evitar é que o vício que dominava as estruturas religiosas instituídas contaminasse o germe de seu movimento de redignificação do homem e de restauração de sua integridade diante de Deus, por meio do derramar gracioso de seu sangue sobre os santos. A laicização do corpo da igreja tem como proposta a distinção unicamente carismática (relativa ao karis, graça ou dom em grego) de seus membros, ou nas palavras de São Paulo, a compreensão que a distinção entre os elementos da igreja é funcional e não essencial, como se alguns tivessem mais ou menos prerrogativas diante de Deus e de seu corpo, que é a igreja.
O que aconteceu e já começa a se manifestar no livro de Atos dos Apóstolos, é que as perguntas sobre ‘quem é o maior’, feitas pelos discípulos a Cristo e divinamente respondidas por ele, começam a gerar uma hierarquização que tem como primeiro marco a instituição dos diáconos em Atos 6, os quais são estabelecidos para que os apóstolos não precisem deixar o ensino e a oração para servir às mesas. Estes, os diáconos, logo são vistos eles mesmos como autoridades da igreja, o que fica claro pelo destaque dado a Estevão e Filipe nos capítulos seguintes do registro.
Quando chegamos nas epístolas paulinas esta estrutura já aparece com um elemento a mais de complexidade. Paulo se vê na condição de apóstolo e comanda figuras como Tiago e Timóteo, os quais na condição de bispos, vão estabelecendo presbíteros e diáconos em cada igreja. Logo, o que temos é uma estrutura clerical nascente que já se divide em apóstolos, bispos, presbíteros e diáconos, antes que deixemos o terceiro quartel do primeiro século. A igreja cristã não foi nem um pouco econômica na criação de cargos e titulações honoríficas ao longo dos próximos séculos. Hoje são tantos que, mesmo pastores como eu, têm dificuldades em compreender precisamente o papel e trabalho de figuras como cônegos e arcediagos.
A pergunta que nos parece inevitável é se isso se dá como um desdobramento ou um desvirtuamento do legado de Jesus? A resposta que eu dou a esta indagação é que ambas as alternativas são verdadeiras. É desdobramento porque me parece inevitável que um ajuntamento como a igreja se desenvolva sem que, simultaneamente, tenha que fazer crescer em complexidade suas estruturas de controle e expansão. Mas é desvirtuamento porque a igreja não poderia ter perdido de vista a necessária e contínua tensão entre o ser e o não ser da semente deixada por Jesus, ou seja, lembrar que aquilo que somos como parte do corpo de Cristo, o somos mercê da manifestação em nós de sua graça, pois não somos na perspectiva pessoal e individual...não somos nem dignos, nem aptos pras incumbências sobre nós impostas, razão pela qual não podemos prescindir da direção e unção do Espírito.
A postura adotada pelos reformadores do século XVI, tais como Lutero e Calvino, partia da percepção de que uma casta de indivíduos não poderia arvorar para si a prerrogativa de serem os representantes de Cristo sobre a terra, levando-os a levantar a bandeira do ‘sacerdócio universal dos crentes’, pelo qual todo cristão deve se considerar um sacerdote, no sentido de que não precisa de nenhuma assistência especializada para buscar a Deus e alcançar o perdão para os seus pecados. Não obstante, o projeto era muito mais modesto do que aquele que poderia ser empreendido, uma vez que manteve na mão de um grupo restrito a prerrogativa de celebração dos sacramentos, o que findou por produzir uma nova sacerdotalização destas figuras, já que as converte em seres ‘sem os quais não’ há sacramento. O que temos em última instância é uma nova ‘sucessão apostólica’, uma linha contínua de ordenações que legitimam, pelo menos em parte, o exercício do ministério. Tanto barulho pra ficar tudo no mesmo!
O desafio da igreja cristã de nossos dias é retomar a essência da igreja preservada nos textos evangélicos, sem desprezar a condução que o Espírito deu a ela ao longo dos milênios. Para isso importa que quem é veja os irmãos e a si mesmo como se não fosse e quem não é como se fosse. O que proponho é o resgate da tensão produzida por uma honesta e franca visão de si mesmo, conjugada com a submissão humilde à vocação dada por Deus a cada um de nós e manifesta em nossos dons e talentos, para a edificação da casa de Deus sobre a terra. O grande perigo que pesa poderosamente sobre todos nós é o de nos tornarmos o que foram os clérigos nos dias do Messias sobre a terra, o maior obstáculo à propagação do evangelho da graça. Deus tenha piedade de nós.

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@reconciliacao.org