Entre Saber e Crer
O que são doutrinas? São construções humanas que afirmam como verdade um determinado arranjo lógico que faz afirmações sobre elementos teóricos ou práticos. Se pensarmos deste modo, podemos afirmar que existem doutrinas em todas as áreas do conhecimento. Seria razoável, portanto, falar em doutrinas jurídicas, médicas, filosóficas, sociológicas etc. Mas em teologia as doutrinas ocupam um lugar especialíssimo, isto porque as teologias, em geral, nada mais são do que feixes de doutrinas, arrumados de acordo com as preferências dos doutrinadores, numa relação dialética com seus discípulos, críticos e com o seu público alvo.
É extremamente complexo afirmar se uma doutrina teológica é ou não verdadeira. Primeiro, é preciso se afirmar que não apenas cristãos fazem teologias. Todo esforço religioso finda por construir um acervo doutrinário como resultado das interações, reflexões e experimentações dos indivíduos inscritos na tradição religiosa. Em segundo lugar, é fato que os critérios de validação das doutrinas teológicas são produzidos autopoieticamente (por si, dentro de si e para si) pela própria religião. Logo, estamos num universo marcado pela arbitrariedade, ou para sermos mais precisos no linguajar filosófico, estamos diante de uma ‘petição de princípios’: algo que diz que aquilo que se afirma é verdade, em última instância, porque se afirma que é verdade. Este tipo de mecanismo lógico foge à possibilidade de verificação e é auto-justificável.
Quando as doutrinas teológicas invocam para si uma veracidade ou validade baseada na revelação do divino, nada mais estão fazendo do que demonstrar, in extremis, que não se pode sustentar logicamente a validade e veracidade de algo que se diz no campo da teologia. Um expediente largamente utilizado neste ambiente é sustentar as afirmações a partir da interpretação de textos sagrados, como a Torá, Bíblia ou Corão. Isto só aumenta o grau de complexidade de tais assertivas, porque duplicam a problemática. Resta saber, agora, não apenas se as afirmações do texto sagrado são verdadeiras (o que só se pode saber assumindo uma relação com crer ou não crer na revelação), mas se as interpretações construídas sobre estas afirmações são hermeneuticamente razoáveis.
Sem querermos nos aprofundar nas problemáticas infindas das regras de interpretação, nos limitaríamos a dizer que ‘regras de interpretação’ são doutrinas. Assim, há pelo menos um corpus hermenêutico em cada tradição religiosa, e este não deve obediência a nenhum critério externo, nem mesmo aos padrões filosóficos universalmente aceitos e conhecidos. Até porque não existem ‘padrões filosóficos universalmente aceitos e conhecidos’. Sendo assim, o que nos resta em termos de saber teológico, uma vez que não é possível assentir com uma afirmação doutrinária pela via exclusiva da razão? Resta-nos, creio eu, a experiência mística.
Por ‘experiência mística’ pretendo descrever o fenômeno que se dá no interior do ser e que é absolutamente pessoal e intransferível. São exemplos de tais experiências a consciência de pecado, a percepção da presença de Deus em algum lugar, a adoração, a convicção interior de idéias concluídas, inferidas ou transmitidas. Deste modo, no campo da teologia é necessário que primeiro se creia para que depois se saiba. Só se sabe como verdade algo, porque se pressupõe a legitimidade e veracidade do mestre, do texto e das lições que destes se recebe. Não fique triste nem deprecie a teologia por serem assim as nossas relações com as doutrinas, porque, com mais ou menos intensidade, se pode dizer o mesmo sobre todas as outras formas de conhecimento já referidas acima.
Mesmo as ciência chamadas ‘duras’, cuja base está na observação dos fenômenos de acordo com metodologias explícitas e rigorosas, exigem um ‘acordo’, um consenso prévio sobre conceitos basilares e um modo comum de interpretar os seus objetos e os resultados de suas experimentações. Freqüentemente, estes acordos se revelam no decorrer do tempo como errados ou precários, são suplantados por novas pesquisas, as quais cristalizam novos acordos, novos consensos. Isto posto, nada se sabe sem que se creia e a fé é o resultado de uma experiência tanto pessoal quanto transformadora. É por esta razão que Jesus não nos mandou ser mestres, mas testemunhas. Não pessoas que ensinam o que sabem, mas que contam o que viveram, que experimentaram.
Com carinho,
Martorelli Dantas
martorelli@reconciliacao.org
O que são doutrinas? São construções humanas que afirmam como verdade um determinado arranjo lógico que faz afirmações sobre elementos teóricos ou práticos. Se pensarmos deste modo, podemos afirmar que existem doutrinas em todas as áreas do conhecimento. Seria razoável, portanto, falar em doutrinas jurídicas, médicas, filosóficas, sociológicas etc. Mas em teologia as doutrinas ocupam um lugar especialíssimo, isto porque as teologias, em geral, nada mais são do que feixes de doutrinas, arrumados de acordo com as preferências dos doutrinadores, numa relação dialética com seus discípulos, críticos e com o seu público alvo.
É extremamente complexo afirmar se uma doutrina teológica é ou não verdadeira. Primeiro, é preciso se afirmar que não apenas cristãos fazem teologias. Todo esforço religioso finda por construir um acervo doutrinário como resultado das interações, reflexões e experimentações dos indivíduos inscritos na tradição religiosa. Em segundo lugar, é fato que os critérios de validação das doutrinas teológicas são produzidos autopoieticamente (por si, dentro de si e para si) pela própria religião. Logo, estamos num universo marcado pela arbitrariedade, ou para sermos mais precisos no linguajar filosófico, estamos diante de uma ‘petição de princípios’: algo que diz que aquilo que se afirma é verdade, em última instância, porque se afirma que é verdade. Este tipo de mecanismo lógico foge à possibilidade de verificação e é auto-justificável.
Quando as doutrinas teológicas invocam para si uma veracidade ou validade baseada na revelação do divino, nada mais estão fazendo do que demonstrar, in extremis, que não se pode sustentar logicamente a validade e veracidade de algo que se diz no campo da teologia. Um expediente largamente utilizado neste ambiente é sustentar as afirmações a partir da interpretação de textos sagrados, como a Torá, Bíblia ou Corão. Isto só aumenta o grau de complexidade de tais assertivas, porque duplicam a problemática. Resta saber, agora, não apenas se as afirmações do texto sagrado são verdadeiras (o que só se pode saber assumindo uma relação com crer ou não crer na revelação), mas se as interpretações construídas sobre estas afirmações são hermeneuticamente razoáveis.
Sem querermos nos aprofundar nas problemáticas infindas das regras de interpretação, nos limitaríamos a dizer que ‘regras de interpretação’ são doutrinas. Assim, há pelo menos um corpus hermenêutico em cada tradição religiosa, e este não deve obediência a nenhum critério externo, nem mesmo aos padrões filosóficos universalmente aceitos e conhecidos. Até porque não existem ‘padrões filosóficos universalmente aceitos e conhecidos’. Sendo assim, o que nos resta em termos de saber teológico, uma vez que não é possível assentir com uma afirmação doutrinária pela via exclusiva da razão? Resta-nos, creio eu, a experiência mística.
Por ‘experiência mística’ pretendo descrever o fenômeno que se dá no interior do ser e que é absolutamente pessoal e intransferível. São exemplos de tais experiências a consciência de pecado, a percepção da presença de Deus em algum lugar, a adoração, a convicção interior de idéias concluídas, inferidas ou transmitidas. Deste modo, no campo da teologia é necessário que primeiro se creia para que depois se saiba. Só se sabe como verdade algo, porque se pressupõe a legitimidade e veracidade do mestre, do texto e das lições que destes se recebe. Não fique triste nem deprecie a teologia por serem assim as nossas relações com as doutrinas, porque, com mais ou menos intensidade, se pode dizer o mesmo sobre todas as outras formas de conhecimento já referidas acima.
Mesmo as ciência chamadas ‘duras’, cuja base está na observação dos fenômenos de acordo com metodologias explícitas e rigorosas, exigem um ‘acordo’, um consenso prévio sobre conceitos basilares e um modo comum de interpretar os seus objetos e os resultados de suas experimentações. Freqüentemente, estes acordos se revelam no decorrer do tempo como errados ou precários, são suplantados por novas pesquisas, as quais cristalizam novos acordos, novos consensos. Isto posto, nada se sabe sem que se creia e a fé é o resultado de uma experiência tanto pessoal quanto transformadora. É por esta razão que Jesus não nos mandou ser mestres, mas testemunhas. Não pessoas que ensinam o que sabem, mas que contam o que viveram, que experimentaram.
Com carinho,
Martorelli Dantas
martorelli@reconciliacao.org
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