Entre Nietzsche e Hodge
Quando me sentei para escrever este artigo, minha mente logo se reportou às palavras introdutórias de Nietzsche em A Gaia Ciência. Ele havia se recuperado de uma grave enfermidade e estava com o espírito em festa por poder volta ao labor da escrita. Disse que quando se vive este estado de “beirar a morte” e se tem a oportunidade de regressar às dinâmicas da existência, volta-se como quem “ama uma mulher em quem não se confia”. A mulher é a vida, amá-la é urgente, mas se faz isto sem que a entrega seja total, meio que com um pé atrás. Sabe-se que não se pode confiar no tênue fio que prende os mortais a este mundo. Durante os últimos quinze dias eu estive seriamente doente, como nunca antes tinha estado em minha vida. Já tive hepatite, cálculo na vesícula e viroses sem fim, mas nunca me senti tão debilitado, nem tão angustiado ante as demandas que continuamente assolavam minha alma, para as quais não podia dar resposta.
Quando me sentei para escrever este artigo, minha mente logo se reportou às palavras introdutórias de Nietzsche em A Gaia Ciência. Ele havia se recuperado de uma grave enfermidade e estava com o espírito em festa por poder volta ao labor da escrita. Disse que quando se vive este estado de “beirar a morte” e se tem a oportunidade de regressar às dinâmicas da existência, volta-se como quem “ama uma mulher em quem não se confia”. A mulher é a vida, amá-la é urgente, mas se faz isto sem que a entrega seja total, meio que com um pé atrás. Sabe-se que não se pode confiar no tênue fio que prende os mortais a este mundo. Durante os últimos quinze dias eu estive seriamente doente, como nunca antes tinha estado em minha vida. Já tive hepatite, cálculo na vesícula e viroses sem fim, mas nunca me senti tão debilitado, nem tão angustiado ante as demandas que continuamente assolavam minha alma, para as quais não podia dar resposta.
Nietzsche é a mente filosófica mais próxima a minha. Ele é muito mal-falado (nisto também nos identificamos), contudo, a grande maioria de seus críticos arremessam contra ele suas setas sem que o tenham lido ou se esforçado para compreendê-lo. O ponto de partida para isso é lembrar que estamos diante de um filho e neto de pastor. Poucos sabem o impacto que crescer dentro de um ambiente densamente religioso pode causar numa alma. Meus avós, tanto maternos quanto paternos, eram religiosos, presbiterianos e congregacionais, respectivamente. De ambos os lados estava eu decisivamente influenciado pela teologia calvinista, vinda especialmente da matriz norte-americana, nas levas de missionários chegados ao Brasil em meados do século XIX, sob influência direta de Charles Hodge, o grande doutor de Seminário de Princeton.
Hodge era um pensador sistemático, como de resto o são os protestantes. Seu pensamento é esquemático, seu Deus é esquartejável, cabe em compartimentos, em tomos teológicos analisáveis pela lógica cartesiana. Fui durante mais de 15 anos professor de teologia sistemática e de hermenêutica bíblica. Trabalhei nos grandes seminários do Recife. Parece que fui um bom discípulo daqueles que são capazes de reduzir a vontade, a mente e as ações divinas em coordenadas e abscissas. Sabia fazer as interpretações que tomam os textos bíblicos como instrumentos de “prova” das antigas verdades (qualquer coisa de 400 anos é antiga para quem tem 40, contudo conheço heresias mais velhas). O dogma da harmonia das Escrituras era o martelo e o formão para deixar plano o sinuoso e a lamparina para clarear o obscuro. Mas fiquei velho para tais contorcionismos, quero ver o que se pode e aprender a andar na penumbra onde a natureza não lançou luz.
Nietzsche muito me ajudou nisso tudo. Aproximei-me dele através das frases bombásticas, como a maioria das pessoas. Afirmações como a de que Deus morreu me impressionaram, queria saber do que ele estava falando, queria ler o autor de contundentes assertivas, forjadas em um coração tumultuado, crescido num lar luterano. Entendi o que ele queria dizer. O deus que morreu é aquele que já não cabe em uma alma livre. Liberta pela revelação de que o verdadeiro Deus é Pai presente e amoroso, de que não é alguém a quem temer, mas para se confiar e contar. O filósofo alemão nos chama para viver o aqui e agora, mas acima dos tabus e preconceitos nascidos das taras moralistas da hipocrisia reinante. O deus que morreu é o de Hodge.
Faz alguns dias que eu estava com Karina, lendo, em minha convalescência, Crime e Castigo de Dostoievski. Ela, que cuidava de mim em uma daquelas intermináveis noites, me perguntou sobre o que queria Nietzsche dizer com a doutrina do “eterno retorno”. Expliquei-lhe que ele construiu um critério para validar as escolhas que fazemos em nosso dia-a-dia. Imagine que a vida é uma constante repetição, que as decisões que tomamos agora retornarão infinitamente. Ou seja, esta nossa conversa neste quarto voltará sempre a acontecer, tendo isto em mente se pergunte: é isso mesmo que eu quero fazer? Olhei em seus olhos e disse que seria para mim um imenso prazer viver para sempre o vivido ali. “Oh! Minha amada que olhos os teus!”.
Hoje, presente supremo de Deus que me fez voltar à vida, quero apenas caminhar e sorrir com meus companheiros. Buscar a alegria e fugir da dor, ajudando a quem puder a fazer o mesmo movimento existencial. Sofrer é inevitável, mas aprendamos com ele. E em tudo nos esforcemos para não fazer sofrer.
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