sexta-feira, julho 25, 2008

Livrando-se das Garras da Rejeição

Há basicamente dois tipos de acontecimentos na carreira humana: aqueles dos quais lembramos e alteram o curso de nossas vidas e aqueles dos quais nos esquecemos, mas que igualmente definem novos rumos para a nossa história. Logo, quer os fatos tenham sido lançados no profundo abismo do inconsciente, quer estejam continuamente presentes diante de nossos olhos, as nossas vidas são e serão sempre influenciados por eles. Isto porque não há encontro ou desencontro nesta existência que não nos mude, mesmo o mais rápido e aparentemente insignificante olhar, ou aquela leitura feita às pressas, deixam suas marcas naquilo que somos e continuamente estamos vindo a ser.

Faça uma experiência, pegue uma folha de papel em branco e peça para os seus amigos fazerem livremente desenhos, riscos ou escreverem palavras nela... assim é a sua alma. Cada pessoa que passa em sua vida deixa marcas. Estas podem ser mais ou menos visíveis, mais ou menos importantes, mais ou menos influentes no nosso peculiar modo de ser, mas estas marcas existem e estão lá. Obviamente que alguns destes registros podem ser um transtorno, podem nos influenciar negativamente, podem ser mesmo um peso para muitos de nós. Como não podemos simplesmente apagá-los, precisamos aprender a conviver com eles e corrigi-los, lançando, quem sabe, sobre eles novas compreensões que corrijam a rota que as malévolas impressões tentaram nos impor.

Sim, isto é possível e necessário. Na verdade, quer saibamos quer não, o tempo todo nossas memórias estão sendo, elas mesmas redefinidas por novos acontecimentos e/ou reflexões que fazemos. Nada em nós é estável e imutável, o oposto é que é a realidade. A única permanência é a contínua mudança de tudo em nós. Mas a questão é como fazer com que estas mudanças representem crescimento, amadurecimento e melhor qualidade de vida. É exatamente sobre a este esforço de auto-gestão emocional que eu quero dedicar este pequeno artigo.

O primeiro passo será sempre invocar para a consciência aquilo que nos incomoda. Desde Freud que falar sobre o assunto parece ser o melhor caminho para isso. Em lugar de fazermos o que geralmente nos parece mais cômodo, que é evitar aquelas temáticas que nos são desconfortáveis, é o caso de nos perguntarmos as causas de nos sentirmos como nos sentimos e de agirmos como efetivamente agimos. O princípio socrático do “conhece-te a ti mesmo” ainda é o mais seguro e produtivo percurso, muito embora, isto, por vezes, exija de nós mexermos em assuntos inquietantes e constrangedores. Esta trajetória pode exigir que nos encontremos com pessoas que estiveram presentes em nossas vidas na infância e até mesmo antes de nascermos para que possamos dominar completamente os sentimentos e acontecimentos que nos rodeavam neste período tão importante de nossa formação, pois sentimentos também são “acontecimentos relevantes”, na medida em que mesmo os sentimentos de outras pessoas entram em contato conosco de modo poderoso.

Um exemplo disso é a rejeição. Não ser ou não se sentir amado é algo duríssimo de lidar. É complicado saber que o que as pessoas nos fazem ou sentem por nós é o reflexo de suas próprias caminhadas e não, necessariamente, uma reposta ao que de fato somos. A realidade é que a rejeição ataca a nossa auto-imagem e pode nos machucar muito. Quando isto acontece com uma criança então as conseqüências, freqüentemente, são avassaladoras. Um bebê é um ser em formação em todos os sentidos, um feto o é também. Nesta fase já são completamente sensíveis ao amor, à raiva, ao medo e a toda sorte de sentimentos humanos. Imagine o que é ter a rejeição como o primeiro sentimento discernido pela alma! É terrível, mas, com a graça de Deus, nós podemos superar até mesmo isso.

Um caminho excelente para nos libertarmos das memórias que tentam nos aprisionar relacionadas à rejeição é lembrar que Deus nos ama e nunca, nem agora nem em nenhum outro momento de nossas vidas, Ele nos rejeitou. Ele que é santo e puro, diferente das demais pessoas com quem temos convivido, Ele que tem todos os motivos do mundo para nos virar as costas, jamais deixou de nos amar. Quando ainda estávamos no ventre de nossas mães, amados ou não por elas e pelas pessoas que a cercavam, nós éramos declarados eleitos pelo amor divino e desde então Ele deseja que nos aninhemos em seus braços ternos. Queria muito que todos nós mantivéssemos a mente bem consciente disso, que há um amor e uma aceitação que supera todas as outras. Nós somos e sempre seremos acolhidos em Deus. A única coisa que Ele deseja e espera de nós que aceitemos o seu amor por nós e que nos amemos também. Faça isso! Não rejeite nem a si mesmo nem a seus irmãos. Paz e Bem!

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org
Uma Tortura Chamada Solidão

Ando lendo Fernando Pessoa, não seus poemas e tratados, mas suas cartas íntimas. Escritas de Lisboa ao amigo Cortes-Rodrigues nos anos entre 1914 e 1916, quando a Europa se debatia nos horrores da primeira guerra (nego-me a chamá-la de “grande”, para mim toda guerra é pequena, posto que o é em seus motivos e propósitos). Confesso que me sinto intruso em um universo secreto, feito não para mim ou para os que as lêem hoje, mas para aquele em quem confiava o coração do poeta, a ponto de lhe falar de suas crises emocionais, seus desertos criativos, suas freqüentes depressões, suas ambições revolucionárias... a ponto de lhe pedir (com freqüência, diga-se) dinheiro emprestado. Até nisso as cartas me consolam. Notem que, diferentemente do que se diz alhures, a condição econômica nada tem a ver com o gênio dos homens ou com as empresas a que se dedicam. A história está cheia de “quebrados” brilhantes, com imorredouros legados. Mas não façamos disso uma virtude... há aqueles que nem sábios, nem doutos, nem empreendedores são apenas desafortunados, no sentido etimológico da palavra.

Pessoa é uma alma outonal. Lendo-o sinto o vento frio e cortante das tardes em que caem descansadas as folhas na capital lusitana. Na verdade, ele deveria se chamar Fernando Pessoas, já que seus heterônimos (outros nomes com que escrevia) são pessoas completas, com data de nascimento e morte, com quem dialoga o poeta. Ele não simplesmente os cria, ele cria neles, ele sofre e convive com eles. Imagino ser o resultado da busca de convivência, de laços comunais, na vida de quem a solidão machucava tanto. Esta é a razão pela qual, no final de cada carta, Fernando não apenas pedia que seu amigo lhe escrevesse logo de volta, mas, também, que o fizesse longamente. O ser humano não foi feito para a solidão, esta lhe é agressiva e enlouquecedora. Os generais sabem disso, e fizeram da “solitária” uma das mais severas e profundas torturas. Não precisam bater, humilhar ou ameaçar o detento. Basta deixá-lo sozinho, sem acesso a sons, imagens ou figuras; sem que se dê conta se é dia ou noite; sem que sinta sequer a presença das sombras externas, como no Mito da Caverna de Platão. Quando um homem é posto assim, em absoluto isolamento, a sua própria mente se converte em seu mais cruel algoz.

É num contexto como este, que a nossa natureza animal revela um dos mais curiosos expedientes de adaptação e sobrevivência. No início, o ser isolado começa a conversar consigo mesmo, fala de suas raivas e frustrações; relembra a sua caminhada e as razões que o levaram àquela punição; pensa no que fará assim que sair dali. Contudo, não demora muito até que este solilóquio seja interrompido por um “mas”. Após a adversativa vem o esforço de compreender o “outro lado do assunto”. O monólogo se transforma em debate interior, como nos filmes de desenho-animado em que um diabinho fala à altura de um dos ombros e um anjo se coloca na posição oposta. O diálogo interno, tantas vezes uma salutar relação dialética interior, vai se fixando e as “personas” vão se cristalizando. Não tarda para surgir o necessário mediador entre os dois, uma terceira voz. Outras muitas vão chegando à medida que o isolamento prossegue. Se a liberdade não chegar logo, ao ser solto e se perguntar: Qual é o teu nome? Corre-se o risco de ter como resposta: “legião, porque somos muitos”.

Os nossos irmãos, monges tibetanos (se Francisco chamava o sol e a lua de irmãos, como não chamaria de irmãos seres humanos como eu), desenvolveram, após milênios de estudo e meditação, uma forma de aplacar esta fome voraz da alma por companhia. Chamam de Nirvana, um estado de quietude da mente, conduzindo-a, como quem poda bonsai, à uma libertação da tirania dos pensamentos, manifesta em uma condição profunda de silêncio emocional. Acho isso tudo lindo, mas prefiro um bom e simples “papo de mesa de bar”, técnica desenvolvida pelos “monges” cariocas de neutralizar o processo de multifacção da mente. Compreenderam que a melhor maneira de evitar que a sua mente se divida e fale um monte de besteiras é permitir que outras mentes o façam, ao sabor de um filé com fritas, tão essencial para os últimos sábios, quanto o incenso é para os primeiros.

A verdade é ainda mais antiga do que todas as até aqui referidas. Foi dita pelo Criador pouco antes da história humana começar: “não é bom que o homem esteja só”. É por esta razão que somos uma Comunidade Cristã, porque nada que é realmente significativo e importante se faz sozinho. A arte da vida é viver com e para os outros, sem ter a necessidade de viver como os outros. Aprender a ser quem é em respeito e comunhão com todos que são como são, na certeza de que tanto nós quanto eles somos “um processo”. Somente Deus é o que é. Paz e Bem!

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org

quinta-feira, julho 10, 2008

Escute a flauta do pastor

Sempre me impressiona o fato de que todos nós, por mais simples que procuremos ser, estamos cercados de ameaças e de perigos. Não foi sem razão que Jesus nos advertiu que estava nos enviando como ovelhas para o meio de lobos (Mt. 10:16). Os riscos são tantos que, não raro, para se sentirem mais seguras, muitas ovelhas preferem se transformar em lobos também, mais ou menos nos termos do adágio popular: “em terra de sapos, de cócoras com eles”. Sem dúvida, a vontade do Mestre é que aceitemos a “dangerossíma” aventura de continuarmos sendo ovelhas em um mundo cada vez mais empestado de seres famintos, ferozes, sagazes e traiçoeiros... esta é a natureza dos lobos.

Vi muitas vezes ao longo de minha vida o poder que têm os interesses mesquinhos para impulsionar as pessoas. Como são capazes de iludir, mentir, machucar e seduzir... tudo para usar os outros para a satisfação de seus instintos adoecidos, que nunca cessam de cobiçar, de desejar com mais e mais intensidade, de alargar suas já incomensuráveis ambições. Num cenário assim é natural que nos desanimemos e, por vezes, até nos desesperemos. O tempo todo nos assedia o pensamento: será que vale a pena viver como somos neste mundo que é como é? Quando a resposta é “não, não vale” nem isso nos alivia a alma, posto que ser o que somos não é uma escolha, é a nossa natureza, como o é a dos lobos e raposas que nos espreitam.

É em momentos assim, quando tudo em mim é medo e tudo fora de mim é perigo, que me recordo de buscar ouvir a flauta do Pastor, como ensinou o Mestre Benjamim. Esta é uma estória do Rubem Alves em um de seus mais recentes livros, “Perguntaram-me se acredito em Deus”. Ele conta que em uma aldeia distante, numa brenha qualquer deste mundo, era costume que os meninos todas as noites fossem à tenda do Mestre Benjamim, para ouvir palavras de sabedoria que procediam dos lábios do homem mais sábio das redondezas. Numa noite em particular, em que chovia e relampeava e se podia escutar o uivo dos lobos misturado com o barulho dos ventos, as crianças estavam tomadas de medo. Uma delas com os resquícios de coragem que lhe restava, perguntou ao Mestre: é tão ruim sentir medo, não há modo de nos livrarmos do medo? Ao que recebeu como resposta: Há sim, basta ter a mente das ovelhas.

Mas como é a mente das ovelhas? Perguntou outra criança. Explicou Benjamim: as ovelhas são seres frágeis e indefesos, mas vivem cercadas de grandes e graves ameaças, são lobos, ursos e leões que por toda parte armam emboscadas e preparam ataques à procura de quem possam devorar. Como conseguem elas se sentir tranqüilas e seguras num mundo assim? Bem, as ovelhas têm um pastor que delas cuida e protege. Sua segurança não é o resultado da ausência dos perigos, mas da presença do pastor. À noite... quando se adensam as ameaças sob a sombra das trevas, o pastor toca a sua flauta. As ovelhas não vêem seu pastor, mas escutam o som de sua flauta e aquele som lhes penetra tão profundamente a alma e a mente que bane completamente todo medo. O som doce e melódico do instrumento do pastor lhes recorda que ele as conduz para as águas tranqüilas e para os pastos verdejantes; que a sua vara e o seu cajado lhes protegem; que nem dormita nem dorme o seu bom pastor. Depois de ter contado isso, outra criança pergunta ao Mestre: os sons da flauta assustam os lobos e afastam os perigos? Ao que Benjamim responde: Não meu filho, o problema das ovelhas não é o perigo dos lobos, mas a força do medo que as paralisa e diminui. O som da flauta afasta o medo não os lobos.

Quanto tempo faz que você não escuta o som da flauta? Parece-me que estamos focados demais em nos manter livres dos lobos, que são cada dia mais ferozes, poderosos, sutis e ardilosos, para que nos reste tempo para identificar os numerosíssimos sinais da presença de nosso Pastor em nossas vidas. Estamos empenhados sobremaneira com ações humanamente preventivas, que visam manter longe os lobos, armados de inteligência e medo. Medo, medo... muito medo. Sem saber que o medo nos matará antes dos lobos e amaciará a nossa carne para suas gulosas refeições. Nós não podemos vencer todas as feras e basta uma para nos liquidar, mas podemos deixar que Deus nos livre do medo. Por isso, meu amigo e irmão, quando lhe assaltarem o medo ou o desespero decorrentes dos infindos perigos circundantes escute o som da flauta. Se prestar bem atenção conseguirá até ouvir que canção ela toca... é uma antiga melodia que diz: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará”. Paz e Bem.

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org