terça-feira, maio 29, 2007

Religiosos: juízes usurpadores do lugar que é exclusivamente de Deus

Uma das passagens mais reveladoras dos evangelhos é aquela registrada nos onze primeiros versículos do capítulo oito do livro escrito por João, sobre a vida e ditos do Salvador. Nela, encontramos Jesus ensinando no templo de Jerusalém, nas primeiras horas da manhã de um novo dia. Neste momento é trazida à sua presença, arrastada por um grupo de escribas e fariseus (eles sempre andam juntos), uma mulher que fora apanhada em flagrante adultério. Ela não tem defesa, nem ninguém se interessa em defendê-la, mas não lhe faltam acusadores. Acusa-lhe a consciência, acusa-lhe o fato ainda no verdor de seu flagror e acusam-lhe os ‘da religião e da fé’.

Quando o assunto é submetido ao crivo do Mestre, este lhe é apresentado acompanhado de uma citação da Lei Mosaica (Deut. 22:22-24), na qual se diz que devem ser mortos por apedrejamento aqueles que neste pecado incorrerem. A tarefa que se espera de Cristo é simples, trata-se de algo que os juristas chamam de subsunção, uma espécie de silogismo lógico, em que se confronta o fato com a previsão legal e se conclui pela sentença a ser dada. O ardil dos religiosos contra Jesus (eu não me lembro de ver religiosos do lado de Jesus, sempre os encontro ‘no contra’), está no fato de que sentenciar alguém à morte seria um descompasso em relação a todo seu ensino, cujos fundamentos eram o amor, o perdão e a comunhão com o Pai.

A primeira reação de Jesus diante do tribunal eclesiástico que se armara diante dele é de desinteresse. É assim até hoje, todas as vezes que em uma igreja (como no templo naquela manhã) os irmãos se reúnem para julgar um outro que foi surpreendido em pecado, Jesus pede licença e vai cuidar da vida dele. Por incrível que pareça, eu não creio que ele abençoe nenhum tipo de juízo eclesiástico, cuja base está da distinção qualitativa ente os juízes e os réus, os primeiros são inocentes os outros, presumidamente, culpados; os primeiros representam Deus, os segundos recebem o castigo (pena) por seus erros, e o recebem por intermédio daqueles. Contudo, o ensino de Jesus é que todos os homens são devedores e incapazes de saldar seus débitos, é por isso que precisam do perdão incondicional de Deus. Não há que se falar aqui sobre quem deve mais ou quem deve menos, porque todos nós devemos mais do que podemos pagar, ou seja, devemos mais do que tudo que temos ou podemos vir a ter.

A parábola do ‘credor sem compaixão’ de Mateus 18:23-35, nos ensina que o desejo do Rei é nos perdoar, mas há em nós esta idéia de que temos que pagar (“sê paciente comigo e te pagarei tudo quanto te devo”, disse o devedor ao rei). Não podemos pagar, nem o Rei precisa receber, mas não suportamos a idéia da graça e sofremos por sermos assim perdoados, sem que se exija de nós nenhum sacrifício, isto porque a nossa natureza reclama por compensações, queremos ressarcir a Deus, mas como poderíamos? O pior é que além de termos tantas dificuldades em receber o perdão e a graça de Deus, somos incapazes de perceber que não temos condições de reclamar dos que nos devem e que a única exigência para que fluamos o pleno perdão é que alcancemos a consciência de que não temos dignidade pra cobrar os débitos dos que conosco convivem.

Voltando para o ‘patético tribunal’, Jesus é chamado para se assentar com os escribas e fariseus na ‘farra da adúltera’, a festa do apedrejamento da pecadora. É aí que, com magistral sabedoria, ele diz: quem for o primeiro vai ser o segundo. As palavras dele foram: “o que entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”, mas o significado era o seguinte: quem for o primeiro a apedrejar, abrindo o circo do castigo humano sobre os pecadores, imposto por iguais pecadores, será o segundo a ser apedrejado, porque ‘com a medida com que medires serás medido e com o rigor com que julgares o teu irmão serás julgado’. Foi neste momento que os religiosos viram que não tinham a menor autoridade para serem juízes, que tudo neles havia que os qualificava para serem réus de um desadoro semelhante ao que montaram.

Jesus não impediu o apedrejamento, apenas lhes fez saber que não havia neles competência para julgar, nem honra para jurisdizer. Fazê-lo seria, e é, usurpação dos direitos intransferíveis, inconferíveis e inalienáveis de Cristo. A nós só nos cabe sentar ao lado da adúltera e dizer em uníssono com Cristo: “eu não te condeno, vai e não peques mais”.

Sem juízo,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org

2 comentários:

Anônimo disse...

São posições como essa que me fazem sentir prazer em ir à Reconciliação. Tribunais em forma de templo não são nada atrativos.

Ah! Adorei o "sem juízo" no final.

Abraço,

Thaís.

Anônimo disse...

Esse texto está maravilhoso e me faz sentir uma vontade imensa de ter uma igreja como a sua perto de mim. Esse "sem juízo" no fim do texto ficou muito bom!!!

Abração!!!

Alê