domingo, dezembro 16, 2007

Uma Revolução Simbólica

Tudo quanto existe no mundo natural foi criado por meio da palavra. Segundo a narrativa do livro de Gênesis, disse Deus “haja!” (Gn. 1) e as coisas passaram a existir. Do mesmo modo o evangelho de João nos ensina que “no princípio era a Palavra (o Verbo), a Palavra era Deus e a Palavra estava com Deus. Todas as coisas foram feitas por causa da Palavra e sem ela nada do que foi feito se fez” (Jo. 1). Vendo por este prisma, não podemos ser daqueles que dão pouca ou nenhuma importância ao que se diz.
Além do mundo físico está o universo simbólico, que é composto de nossas representações discursivas e do imaginário, mas permeando e influenciando a esfera concreta das coisas que são. Dar menos importância a isto do que àquilo que chamamos de ‘realidade’ é esquecer o que falamos acima, de que todas as coisas nascem de uma fonte verbal e se condensam na concretude do real. Logo, há uma semente de realidade naquilo que se diz.
Jesus estava extremamente preocupado com aquilo que seus discípulos falavam. Nem um nem duas vezes ele os ensinou sobre o que convém dizer e o que convém não dizer. Ele disse que ao chegar numa casa eles deveriam saudar os que ali habitam dizendo “Paz seja nesta casa!” (Lc. 10:5), afirmando ainda que se houver na casa pessoas dignas da paz que se deseja, esta descerá sobre ela, caso contrário, “a vossa paz tornará para vós”. Não é apenas um conjunto de palavras é uma prenda, um presente, uma dádiva viva.
Noutra ocasião ele advertiu aos seus discípulos para que não julgassem a seus irmãos (Mt. 7:1), porque se assim eles procedessem estariam construindo um ambiente tribunalesco, em que eles mesmos seriam colocados na condição de réus, mais cedo ou mais tarde. Além disso, destacava o fato de que eles e nós não somos dignos de julgar ninguém, uma vez que somos acusados também por nossa própria consciência (“quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” Jo. 8:7).
De tudo isso nós estamos bem lembrados e, posso afirmar, que estas verdades têm sido ensinadas na maioria das igrejas cristãs de nossos dias. Mas há algo que tem sido completamente esquecido. Aquilo que Jesus com palavras claríssimas ensinou e que está registrado no capítulo 23 do evangelho de Mateus, nos primeiros dez versículos:
“Então, falou Jesus às multidões e aos seus discípulos: Na cadeira de Moisés, se assentaram os escribas e os fariseus. Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem. Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los. Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem vistos dos homens; pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas. Amam o primeiro lugar nos banquetes e as primeiras cadeiras nas sinagogas, as saudações nas praças e o serem chamados mestres pelos homens. Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem sereis chamados guias, porque um só é vosso Guia, o Cristo”.
A verdade e atualidade destas palavras são constrangedoras. Eu as leio com vergonha e um profundo sentimento de arrependimento. Elas se aplicam perfeitamente a mim. Eu fui assim e ainda estou tentando deixar de ser. Que o Senhor tenha misericórdia de todos nós! Em nossa presunção, cegueira e orgulho assumimos o lugar de Deus e deixamos de reconhecer que somos suas criaturas e seus filhos, que somos todos (todos mesmo!) irmãos. É assim que Jesus desejou que nos chamássemos: irmãos. Nem de pastores, presbíteros, reverendos, padres, guias ou quaisquer outros títulos, os quais iludem os homens e obliteram a fascinante e libertadora verdade de que somos iguais, com virtudes e fraquezas, com esperanças e desencantos, com dias bons e maus.
Há dois tipos de espíritos fracos que carecem destas estruturas hierárquicas para se sentirem seguros e felizes. Aqueles que precisam ser tratados com distinção, deferência e especial respeito para se sentirem, ainda que só um pouco e por um pouco de tempo, especiais. E aqueles que necessitam ter a estas pessoas sobre si para se sentirem protegidos e guiados neste mundo confuso. Não são poucas as pessoas que se enquadram nestes dois perfis, mas eu oro ao Senhor para que nos transforme em uma comunidade de pessoas crescidas, que sabem (e fazem questão de não esquecer) que somos apenas companheiros de peregrinação. Todos viajantes, que se alegram por não terem que caminhar sozinhos, que cantam com contentamento seus louvores porque isto traz saúde e paz.
Ninguém precisa ser maior e melhor, nem menor e pior do que eu para andar comigo, até porque, se olharmos para dentro das pessoas notaremos que tais diferenciações são meramente resultado de nossos preconceitos e preferências pessoais. Acredito que chegou o tempo de realizarmos uma revolução simbólica no meio cristão. Revolução sim, mas não uma novidade. Esta mesma radical mudança já foi operada muitas vezes na história da Igreja, começando com Jesus de Nazaré, que não era nem sacerdote, nem levita, nem escriba, nem doutor da Lei, era apenas carpinteiro. Ele é o nosso mestre. O Espírito de Deus é o nosso Mestre. Ele é o nosso Pastor e Guia! Creiamos nisso e vivamos em amor, como seus discípulos e irmãos uns dos outros.
Lembro também que Francisco de Assis empreendeu em seus dias uma viragem semelhante. Num mundo medieval cheio de autoridades eclesiásticas e títulos de nobreza, ele teve a coragem de ser apenas “Frei Francisco”, irmão Francisco. Gostava que lhe chamassem de “fratello”, de irmãozinho; de “povorello”, o pobrezinho. Deste modo, queria se fazer irmão de todos, mas, principalmente dos mais pobres de seu tempo. Pregava vestido de trapos e descalço, como qualquer pedinte. No momento de sua morte pediu para que seus irmãos o colocassem no chão, para que morresse como morrem os indigentes. Era assim que ele se considerava, tomado por um profundo sentimento de pecado, mas que contrastava com seu imenso amor para com todas as pessoas, e até mesmo para com todas as criaturas de Deus.
O meio religioso está repleto de pop-stars, homens e mulheres que são shows ambulantes. Que Deus nos livre disso! Que entre nós só o Senhor seja a estrela e que só o Espírito seja glorificado. Escolhi três palavras que devem ser os signos de nossa Comunidade: fraternidade, simplicidade e serviço. Ajuda-nos Jesus a sermos assim!

Com carinho,

Martorelli Dantas
martorelli@martorelli.org

Nenhum comentário: