Algumas pessoas me perguntaram o que eu queria mesmo dizer com a expressão “uma igreja morena”. Por igreja morena eu pretendo definir uma comunidade cujos traços essenciais são não apenas brasileiros, nordestinos e recifenses, mas também litorâneos e contemporâneos. Um grupo de irmãos que aceitou o seu tempo e espaço, que não está vinculado a algum momento do passado, tendo eleito um período da história da humanidade como o mais feliz, mais fecundo e mais apropriado para se viver; fazendo agora todo esforço para se reportar moral, teológica, ideológica e esteticamente à este período.
Quero que sejamos gente daqui e de agora, mas, simultaneamente, pessoas que vivenciam o mistério da contínua encarnação do Verbo. Se a igreja é o “corpo de Cristo”, este precisa estar em constante processo de humanização, de descer e fazer-se menino entre nós. Aqueles que seguem o Caminho precisam ser capazes de não apenas falar a língua de seus semelhantes, como também de imiscuir-se em sua cultura e, a partir dela, anunciar as boas novas de que Deus ama o pecador, que não está zangado com ele, que o quer bem perto de Si. Que o Senhor ama fazer festas e que não há uma só alma que se volte para Ele sem que isto produza nEle vontade de música, de danças e banquetes.
Não foi isso que nos ensinou a parábola do Filho Pródigo? Que Deus está à espera que seus filhos voltem, para que os músicos comecem a tocar e que as chamas do churrasco a crepitar? Quero viver esta festa, quero dançar no baile dos arrependidos, um baile sem-máscaras e, por isso mesmo, absolutamente desconcertante. Antigamente as pessoas viviam sem-máscaras e, de vez em quando, colocavam uma para um momento especial. Hoje vivemos de máscaras (inclusive eu) e as tiramos raramente em ocasiões singulares. A festa do amor de Deus tem o requinte, o glamour e a sofisticação de um baile sem-máscaras. Evento raro em nossos dias.
Se você leu estas últimas palavras e ficou pensando: Martorelli está se referindo a fulana e a beltrano... Então não entendeu nada do que é ser uma igreja morena. Nossa morenidade se expressa em nossa preocupação com o tempo presente, o lugar presente e as pessoas presentes. Se estamos nos reportando ao passado e aos indivíduos que no passado fizeram parte de nossas vidas é porque somos gente de ontem e este tipo de pessoa não é morena. Conheço homens e mulheres em nossa Comunidade de pele bem clarinha, de olhos e cabelos alvos, mas com uma alma morena. Identifico no mundo seres ‘bem-passados’, como eu, mas cujos sentimentos ainda não se tornaram morenos.
Um dia todos nós fomos morenos, mas com o tempo nos esquecemos disso. Foi uma época em que a classe social, a cultura, o poder político de alguém não importava nada. O que interessava mesmo é que tinha aparecido mais uma pessoa para brincar de esconde-esconde ou pular corda. Um tempo em que a nossa memória era tão curta como a de um menino de cinco anos que diz pro amiguinho: “nunca mais... nunca mais em toda a minha vida eu vou brincar com você”. E que cumpre a promessa durante os três próximos minutos, até que uma bola corra na campina ou que a tia chama para comer biscoito com suco de laranja. Aí é só abraço e amizade, coisas morenas.
Quando Deus quis que o seu Filho viesse ao mundo, escolheu uma moça, virgem de alma, corpo e coração, uma menina morena. Depois que ela deu à luz o seu primogênito muitas coisas aconteceram. Seu coração amoroso e simples foi ferido pelos golpes da injustiça e da ingratidão. Seu rosto doce e meigo foi sulcado pelas torrentes de lágrimas que de seus olhos brotaram. Sua voz, antes sempre embalada por cantigas de roda, aprenderam a exprimir o inexprimível em gemidos solidários àquele que de si saíra, mas de si nunca partira. Nem sei porque chamam ‘parto’ o nascimento de uma criança, elas nunca partem. Deve ser porque se partem os pais e começam a viver não mais apenas suas vidas, mas tantas quantas deles partiram.
Maria-mulher é em tudo diferente da Maria-menina, só uma coisa nunca se perdeu, foi sempre morena. Vejo-a morena no cântico que compõe para exaltar a Deus pelo anúncio que recebera de que seria mãe do Salvador; é morena no templo ouvindo as profecias de Ana e Simeão; em sua solicitude e disponibilidade para que a festa não acabe por falta de vinho nas bodas de Caná da Galiléia, mas vejo-a assim, sobretudo, ao pé da cruz... sem desespero, sem ansiedade, sem ódio ou cólera... só dor e silêncio, como se soubesse o que sabiam os amigos de Jó, que quando a dor é muito grande não importam palavras, mas é indispensável e impossível de avaliar a importância de uma presença amiga.
Domingo, quando os vi neste auditório do Hospital de Aeronáutica, vocês que aqui não precisavam estar. Que abriram mão do conforto e da segurança para me acompanharem nesta insólita aventura que é plantar não apenas uma nova igreja, mas um jeito novo de ser igreja, me dei conta que vocês são morenos; de que se eu quiser escolher modelos de morenidade basta tomar aleatoriamente a mão de qualquer um que caminha conosco e colocá-lo de pé; que quem mais precisa aprender aqui sou eu. Eu que ainda não sou moreno, mas que estou pegando sol pra caramba! Muito obrigdo!
Sou grato ao Senhor pela semente que nos deu. Pelo Menino-Moreno que foi adorado pelos magos, pastores e anjos, seres em tudo diferentes, mas tão iguais quando se prostram diante dAquele que do pouco faz muito, que do enfermo faz são, que do só faz guia, que da água faz vinho, que do pão faz corpo, que da dor faz esperança, que do começo faz vitória. Glórias, honras e louvores unicamente ao Seu nome que é santo, puro e perfeito. Que sendo Deus, não julgou ser humilhante demais, por amor, fazer-se homem, posto que nada é humilhante demais se é feito por amor. Ele, morrendo moreno, nos fez filhos de Deus. Aleluia!!!
Um comentário:
Oh amigo! Que Deus te permaneça e te faça cada dia mais uma pessoa morena como essa que descreve em seu texto. Você sabe o quanto torço por ti. força, coragem, e determinação, são as palavras chave para essa nova caminhada, e o Senhor vai te dar tudo isso, e muito mais. Xero no coração
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