sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Saudades de quem não partiu

Ontem encontrei com um doce amigo, Túlio Vinícius. Encontrei-o, mas ele estava ausente. Nem sempre estamos presentes onde presentes estamos. Presença é mais que consciência, é vontade de brincar, de sorrir, de dançar. Isto fizemos muitas vezes juntos. Senti saudade de nossas longas conversas sobre a fé e a graça, de suas risadas simples e de sua imensa fidelidade à minha sempre constante debilidade. Túlio é um desses homens raros, que não pode trair-se a si mesmo, que teima em ser escancaradamente ele mesmo, ainda que debaixo de pesados disfarces.

Quando orei por ele tive que me corrigir várias vezes em minhas palavras. A mente teimava em conjugar equivocadamente o verbo, como se falasse de alguém que foi, enquanto ele ainda estava ali. Será que estava? Nietzsche disse que não poderia crer num Deus que não soubesse dançar. Nem eu. Vejo em tudo o que olho os passos leves e precisos do bailar divino. Foi por isso que meu amigo atendeu pálido à minha saudação, diferentemente de tantas outras vezes em que ao som de minha voz o seu coração saltitou, pronto para a dança. Mas o Senhor chegou antes, e o tomou em seus braços e já agora rodopia com ele sobre as altas colinas.

Pouco importa se as pessoas estão ausentes, o que resta é saber se onde estão, encontram-se mais felizes do que se aqui estivessem. Penso em minha amiga Chica e em seu pequeno filho... como eles ainda queriam dançar... Há tanta música nesta vida e tanta dança em nossos pés, por que a festa tem que acabar tão cedo? Mas se eu bem o conheço... este não é um Túlio qualquer, é um Túlio “Vinícius”, deve ter ido, como fazia sempre o seu xará, para uma outra festa. Nesta existência a festa não cessa pra quem festeja, nem começa para quem a espera o melhor momento para celebrar.

Os antigos gregos falavam de “o barqueiro”, aquele que vem nos conduzir deste para o outro mundo. Noutra tradição, latina, costumou-se pensar na morte como “o ceifeiro”, aquele que vem nos desarraigar do chão desta vida. Em ambos os casos, as representações da morte não são “inimigas”, são condutoras, seres tranquilos e pacientes (pra que serviria a pressa?). Na mesma canção em que Francisco chamou o sol e a lua de irmãos, disse que a morte é nossa irmã. Suponho que esteja certo. Não tenho medo que Túlio morra. Tenho medo que ele viva sem vida. Não seria ele.

Findo este texto, escrito Deus sabe para quem, citando outro Vinícius vivo e morto:

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Recife, Dia de Finados de 2009

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