Senso de Sobrevivência Institucional (SSI) X Senso Comum Teórico dos Teólogos (SCTT)
Eu entrei no Seminário Presbiteriano do Norte bem novinho, tinha 18 anos, mas uma coisa eu já tinha, o tal do senso de sobrevivência institucional (SSI). O que é isso? É a capacidade de saber que há coisas que não devem ser ditas ou feitas, caso você queira sobreviver em uma instituição. Muito embora o ambiente em que eu estudei, no final dos anos 80, beirasse o fascismo, onde imperava o policiamento intelectual e o denuncismo, eu consegui concluir o curso, em grande parte, pela compreensão e companheirismo de meu Tutor, o Rev. Edijéce Martins Ferreira.
Era claro para mim, que havia alunos que não tinham o mínimo de SSI. Lembro de um colega, que em uma aula de Escatologia, fez a seguinte intervenção, na presença de nosso carinhoso mestre, Rev. Éber Lenz César: : “com a licença da palavra... eu acho esse negócio de ser amilenista ou pré-milenista uma merda. Isso não salva a alma de ninguém!" Foi a primeira vez que um “merda” fora dito em uma das sacrossantas salas de aula do SPN e o professor, ruborizado, bradou: Eu não lhe dou licença para usar esta palavra aqui não! Já para fora!!! Foi este mesmo amigo (querido amigo) que em uma conversa com o, então, diretor do Seminário, respondeu à seguinte pergunta retórica “você sabe quem me colocou no cargo que eu ocupo, meu filho?”, com a assertiva dura e seca: “Sei sim, foi o Diabo!!!”. Eu não preciso lhes dizer que ele não é mais pastor presbiteriano, mas chegou a ser... imaginem vocês...
No final das contas, se você não adulterar, roubar ou matar, acaba sendo aceito como pastor em alguma denominação evangélica. Só não cometa um destes três pecados capitais. Ah... tem mais um, o da heresia. Não pode ser muito herege. Um pouco, quem não é?! Mas tem aquelas doutrinas, sobre as quais não se pode transigir. Não porque sejam pilares da fé, mas porque são as da moda, eleitas pelos “caciques do dia” como as inegociáveis. Nos dez anos em que fui professor de Teologia Sistemática e Hermenêutica do SPN (de 1994 a 2003), eu fiquei assustado com os efeitos que o excesso de SSI pode provocar nos jovens estudantes de Teologia.
Eles aprendem nas suas igrejas locais as respostas certas, elas estão no Catecismo de Westminster, e sabem que aquele é um lugar seguro para se estar e pensar. Nada fora deste estreito enquadramento é chão onde se possa pisar. Em minhas aulas, eu, frequentemente desafiava os alunos a questionarem o fundamento bíblico de suas crenças, verificando se aquilo que confessavam estava na e de acordo com as Escrituras. Mas era, e me parece que continua a ser, um esforço grande demais para a maioria deles, caminhar no espaço de oxigênio rarefeito de uma reflexão pessoal e livre.
Uma brincadeira que eu tinha prazer de fazer, era citar as Institutas da Religião Cristã, de João Calvino e pedir para que eles comentassem. Mas não qualquer citação, as cabeludas, as que não se adequam com o “senso comum teórico dos teólogos” (SCTT), adaptando uma conceito de Luiz Alberto Warat, feita para os juristas. Como pouquíssimos haviam lido Calvino e eram calvinistas de segunda ou terceira mão (explicando... acreditam no calvinismo que ouviram de alguém, que ouviu de alguém, que teria lido, que Calvino disse algo mais ou menos assim...), era fácil chocá-los. Como no dia em que mencionei o ensino de Calvino de que Jesus, após a sua morte, foi pessoalmente ao inferno para sofrer, “como que de mãos atadas”, uma vez que a nós estava destinado sofrer, morrer e ir para o inferno, as três coisas fez Jesus por nós.
O que dizer disso?! Era uma confusão só. O SSI não permitia dizer simplesmente que Calvino estava errado, mas o senso comum teórico dos teólogos dizia que a afirmação não fazia sentido (já estou vendo o número de e-mails que eu vou receber de calvinistas me perguntando em que parte das Institutas Calvino diz isso. Vá procurar, vá ler!). O grande problema é que eles não tinham escutado aquilo dos púlpitos de suas igrejas e nem tinham lido nos textos “semi-devocionais” dos calvinistas da moda de agora. E agora? Era justamente isso que eu queria lhes ensinar, que é preciso, nas palavras do Pe. Antonio Vieira, mais do que “pregar sobre os santos, mas pregar como os santos” (Sermão aos Peixes), não apenas pensar sobre o que disseram os nossos mestres e gurus, mas pensar como eles pensaram, criticar as práticas e os dogmas dominantes, como eles fizeram.
Quando deixei a Igreja Presbiteriana do Brasil, no final de 2003, havia recebido a honra de ser o paraninfo das três últimas turmas de bacharéis em teologia do SPN (são turmas anuais e não semestrais), havia sido por duas legislaturas presidente do Sínodo Central de Pernambuco e era Secretário Nacional de Mocidades, mas estava triste. Via crescer e se desenvolver nas mente de meus jovens amigos o nefasto poder da síndrome do SSI, ela havia formatado e travado de tal modo a mente dos meninos que era notório o clima de medo e insegurança em minhas aulas. Poucos tinham a coragem de me questionar ou debater comigo minhas posições e afirmações, mas não faltavam os que faziam duras críticas ao meu ensino, logo após a minha saída da sala, só pra deixar marcada sua posição ortodoxa e tradicional.
Deixei a IPB de tristeza. Tristeza com a política eclesiástica, sobre o que eu não preciso dizer muito, basta dizer que é só política, nada mais que política. E tristeza pela educação teológica, que já não conseguia formar pensadores ousados e autênticos, mas meros repetidores do que é seguro e lugar comum. A tristeza ainda não passou, mas convive com esperança de que não seja mais assim. Deixei também a IPB, a igreja de meus pais e avós, porque quero continuar pensando, quero me contradizer, ser incoerente, ou seja, quero ser eu, quero ser livre!
Com carinho,
Martorelli Dantas
2 comentários:
Parabéns por expressar, em suas palavras e por suas experiências, nossas palavras não ditas e nossa experiência fingida, muitas vezes.
Paz!
Há muitos anos faço umas perguntas?
"Porque não podemos debater ou conversar sobre a Bíblia? Por somos obrigados simplesmente a aceitar o que nos é imposto por quem está na "cadeira do professor"? Porque não podemos discordar da colocação do comentarista da revista adotada na EBD? Porque a a maioria das EBDS são "apenas fala que eu escuto", ou quando muito "pergunte que o mestre responde"?
Não é elogio ou "puxa saquismo", mas, a pura realidade. Seu artigo respondeu minhas perguntas.
Sem rixas e contendas, mas creio que é preciso lutar para que haja mudanças. Entendo que os cristãos denominacionais não podem ser meras lagartixas, o tempo todo balançando a cabeça em sinal de aprovação.
Um grande abraço. Perdoe-me pelo desabafo.
Fabio, cristaodebereia.blogspot.com
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