Desculpem se eu não me expresso bem, é que eu não sou daqui.
Por Martorelli Dantas
Acho a Imbiribeira um bairro muito interessante, que combina uma área comercial com muitas residências, mas eu não sou daqui. Acho estranho como é possível que a miséria de muitos conviva com o conforto de poucos, e que estes não suponham que isto resultará em violência. Os fundos de uma loja de carros importados é habitada por pessoas que não têm sandálias, há anos que a principal avenida inunda com qualquer chuva por falta de drenagem e as autoridades são incapazes de tomar qualquer atitude efetiva, com os pesados impostos que cobram das pessoas que vivem aqui... é, eu não sou daqui.
O Recife é uma cidade cheia de cultura e vida, aqui conheci pessoas maravilhosas, que me ensinaram profundas lições, mas eu não sou daqui. Sinto-me deslocado quando percebo que à noite o centro da cidade é invadido por uma multidão de miseráveis que dormem nas marquises das lojas e igrejas. Onde estão estas pessoas de dia? Que poder de invisibilidade é este? Ou será que são meus olhos que não os querem ver, para não me fazer sofrer? O que sei é que eles estão lá, todos os dias, em todos os anos, desde que eu era criança tem sido assim. Nunca vou compreender como é mais fácil encontrar pessoas dispostas a dar sopa pra cem do que mudar a vida de um, sem perceber que de um em um se restauram cem. Mas é natural que eu não consiga decodificar isso de modo inteligível para mim, eu não sou daqui.
O Brasil é um país paradisíaco, as mais belas paisagens do mundo, recheadas de um povo simples e alegre, fraterno e hospitaleiro, mas eu não sou daqui. É impossível que a corrupção seja um mal endêmico assim. Que tenhamos que trocar ministros todos os dias, porque cada um que colocamos traz consigo os mesmos vícios que encontra incrustrados nas repartições e pastas que assumem. Quando digo que não sou daqui, não é porque me considere melhor que os demais, a minha estrangeirice se manifesta em não achar isso nem normal nem aceitável. Isso clama em mim por rebeldia, por constrangimento coletivo, por um mea culpa nacional. Estou certo que isso vai acabar, que um dia já não será mais assim, mas acho que eu não estarei aqui pra ver, porque eu não sou daqui.
E este planeta azul que chamamos Terra? Que como diz Caetano, carrega em seu nome o nome de sua carne. Que lugar lindo! Rodei seus continentes, amei lugares e amei em lugares maravilhosos, mas eu também não sou daqui. Nunca vou compreender porque as pessoas precisam esconder seus sentimentos, carecem de bens que lhes atribua significado e importância, não percebem que o valor de alguém está nos valores que carrega em seu coração. Pra que usar um indivíduo se é possível brincar e sorrir com ele, sentar à sombra de uma árvore e dividir uma maçã, um pão com mortadela... Há tanta felicidade às mãos, mas as mãos não cessam de juntar e defender, de lutar e tomar, pra findar sempre dizendo adeus.
Ao longo destes quarenta e três anos em que estou aqui, sempre soube que chegaria o momento de voltar pro meu lugar, isso não me angustia. Só quero que, de algum modo, eu possa contribuir para melhor colorir estes lugares por onde peregrinei e continuo a fazê-lo. Muitas vezes encontrei pessoas que também não são daqui, em alguns momentos os consolei, noutros fui por eles consolado. Talvez você que está lendo este texto, também se sinta como nós, deslocado, fora do lugar... não tenha medo, apenas floresça e floreie, esta é a nossa missão.
Um comentário:
Muito bom Martorelli, que perspectiva admirável.São textos dessa natureza, que abre os nossos olhos para a realidade irrefutável,de que
"não somos daqui".
Pr. Jerry lourenço
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